“O pobre Coitado (Sim. Isso mesmo. Seu nome era
Coitado.) tomara a decisão mais radical da sua vida: suicídio. Lá estava ele
(eu me lembro como se fosse hoje) com aquela cara aparlemada, sentado no beiral
do terraço do Edifício Fácil. Vestido sempre com as mesmas roupas desbotadas,
parecia uma personagem de desenho animado. Não somente o pano velho do
vestuário, mas, a vida, para ele, já tinha perdido todas as matizes.
A gota d’água: flagrou a esposa ouvindo sinos com um
terceiro dentro do ofurô do barracão (por “ofurô” leia-se “tanque de alvenaria
com três metros cúbicos de água fria”). O pegador não era outro senão um seu
primo-compadre, o feirante Nabucodonosor, mais conhecido no bairro como o Rei
Nabo, por ser muito bem dotado em matéria de hortifrutigranjeiros.
Com tantos adultérios proliferando por aí a todo
instante, o episódio do affair dentro do tanque poderia parecer banal e démodé
à maioria dos seres humanos sexuados, ao ponto de conduzir um sujeito à
melindrosa decisão de se autodestruir. Acontece que a decepção com a
companheira foi apenas mais um grão de areia na gigantesca duna de justos
motivos que Coitado carregava sobre os ombros.
Analfabeto desde que nascera (ai!), Coitado morava mal
à beça num casebre de invasão às margens do Córrego Caganeiras. Saía pela
cidade puxando a carrocinha baú feito um cavalo, a catar papelão, plástico,
latinhas de alumínio e toda espécie de lixo urbano que pudesse render alguns
trocados na usina de reciclagem. Assim como se faz aos dejetos inorgânicos, ele
tentou, sem sucesso, reciclar os pensamentos ruins: precisava largar aquele
serviço, a mulher, os problemas, a vida enfim, que estava mesmo — tal e qual
aquele ribeirãozinho fedorento — uma verdadeira merda.
Nos últimos meses enveredara na pinga e no álcool
absoluto 92,8 graus. Certa feita, como estivesse sem moedas, cismou de degustar
etanol furtado de um veículo e quase virou ao avesso de tanto vomitar. O casal
tinha cinco filhos, sendo quatro meninas (todas já iniciadas — por puro desamparo
e deseducação — na fornicação, na gravidez precoce, na parição desenfreada ou
no aborto clandestino) e um rapagão que, para desgosto de Coitado, assumira
recentemente, na efervescência testosterônica dos seus 17 anos, que gostava
mesmo era de homem. Coitado só não expulsou o filho de casa porque ninguém lhe
dava ouvidos: nem a mulher, nem a prole, nem os ratos.
Coitado era franzino e seu corpo tremia como sói
ocorre àqueles à beira de qualquer morte, no alto do velho Edifício Fácil,
tantas vezes utilizado para espetáculos bizarros daquele naipe. Uma atenta
plateia formara-se lá embaixo, visto que Coitado escolhera a dedo o horário do
rush, numa das ruas mais movimentadas daquela maldita cidade. A Imprensa,
sempre disposta a flagrar incríveis acontecimentos vendáveis no caos urbano, já
se encontrava com as lentes a postos para cobrir o show de suicídio.
Fazia meia hora que Coitado estava posicionado no
terraço, tempo mais que suficiente para aparecer nos principais canais
televisivos do país. Seu salto mortal seria transmitido, ao vivo (que piada!),
em cadeia nacional de rádio e TV. Seria injusto supor que a demora em saltar
fosse premeditada. Afinal, Coitado não possuía nem comida em casa, quem dirá
televisão.
Aliás, além da água salobra misturada com o sêmen dos
amantes, aquele muquifo tinha praticamente nada, senão um amontoado de
estranhos convencionados “família”, um grupo maltrapilho à margem da sociedade,
sem a mínima condição de sonhar, um biguebróder miserável e com audiência
nenhuma, do qual todos desejavam um dia escapar, entorpecendo-se,
prostituindo-se, ou morrendo. Aliás, a esperança de que todo o mal se extinga
um dia é a última de morre.
Coitado gritou lá de cima que era pra alguém dizer à
desgraçada da sua mulher (o adjetivo grotesco foi copiado, ipsis litteris, sem
qualquer exagero, por este escriba que se encontrava no meio da multidão
naquela tarde modorrenta e fedendo a enxofre) que ele a odiava mais que a
própria vida. Uma vizinha do casal, igualmente imersa em miséria, correu e
contou à mulher que Coitado estava na TV ameaçando pular do enorme Edifício
Fácil. “Que pule, aquele corno...”, esbravejou sem nenhum remorso, sem
vestígios de afeto.
Com a demora do bebum em saltar no vazio da tarde, o
povão começou a vaiar. Vocês sabem, movido por um curioso sentimento interior,
o Homem nunca está plenamente satisfeito com as coisas. Ora, a vida não é feita
só de espetáculos. Todos ali precisavam retomar à rotina, tocar o barco, cuidar
dos afazeres, cumprir os compromissos, atingir as metas, correr atrás de
dinheiro, meter os pés pelas mãos. Não podiam permanecer a tarde inteira a
aguardar que um derrotado pulasse do terraço e proporcionasse à massa alguns
instantes de drama, emoção e pura adrenalina. Tanto assim que o coro “Pula!
Pula! Pula!” não tardou a brotar. A galera insistiu. Uma cidade inteira não
podia parar por conta das vacilações de um covarde. Era agora ou nunca.
Coitado ficou em pé na pontinha. A galera apupou. Os
profissionais do resgate apressaram os passos para coibir o sujeito de consumar
o ato. Mesmo à luz do dia, os flashes pipocaram. Evangélicos e outros crentes
do rebanho balançaram as suas bíblias, rogaram com veemência, socaram o próprio
peito a interceder junto ao Pai por mais aquele pecador. Lá de cima, Coitado
enxergava um mar de bracinhos esticados segurando smart-fones. Ninguém — nem
fodendo — deixaria de registrar aquela cena.
Ele balançou o corpo como se fora um
centroavante na marca do pênalti, defronte a bola, a ludibriar o goleiro. Abriu
os braços magricelos de veias salientes e gritou “ai, mamãe” (notem: na hora da
morte, 100% dos Homens, mesmo os filhos-da-mãe, recordam-se das genitoras). Saltou
no espaço. Bateu os braços como se fossem asas, imitando passarinho. Então, um
esplêndido fenômeno fez com que ele levitasse, flutuasse sobre a multidão,
misturando-se a um bando de urubus que desde cedo rodopiavam no céu, atraídos
pela catinga diuturna de peixe podre do mercado.
O povo ficou insano, estupefato,
decepcionado horrores com aquele viés kafkaniano de última hora. Foi quando um
estranho (mais uma criatura invulgar dentre tantas) sacou uma pistola e
disparou seis vezes. Abatido, Coitado perdeu a proa, abandonou seus penados
colegas de revoada, e despencou no vazio, drasticamente, com o corpo desnutrido
cravejado de projéteis que interferiram no seu projeto de voo panorâmico sobre
a carniça. Como diria o cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, “morreu
na contramão atrapalhando o sábado”.
Respingados de amargura e sangue anêmico,
os transeuntes despertaram daquele transe vespertino e foram cuidar das suas
vidas. Exceto os urubus e o pessoal do IML, indispensáveis criaturas
especializadas em se ocupar com os mortos.”
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