Se tudo é preconceito, xenofobia e fascismo, nada mais o é de verdade




por Marcelo Franco, Revista Bula -

 curiosíssimo, “Look Who’s Back”, título traduzido do original alemão (e não sei se em português ele se tornou o óbvio “Vejam Quem Voltou” — ou algo assim —; preguiçoso, deixo a pesquisa como tarefa de casa para quem me lê).
A premissa é evidente: reconheceríamos Hitler hoje se ele retornasse? Baseado num romance que não li (nem mesmo sei o nome do autor), o filme mostra Hitler reaparecendo, numa bola de fogo ou energia, no parque que agora existe onde era seu Bunker. Confuso no início, logo ele se informa por jornais e televisão (“Que esplêndido meio de propaganda!”) e capta a raiva dos alemães (creio que as pessoas com quem ele conversa no filme não são atores — outra pesquisa para vocês —, o que torna as ideias malucas que dizem mais perturbadoras).

Confundido com um comediante, ele então compreende que pode usar a fama crescente para voltar à política. Permeando tudo isso, outra ideia: Hitler nunca morre porque ele está em nós, como mostram as conversas do Führer do filme com o frustrado povo alemão.


Sim, a óbvia mensagem é importante e está no ar há décadas, desde a alegoria “A Resistível Ascensão de Arturo Ui”, de Bertolt Brecht, passando pelas memórias de Stefan Zweig, “O Mundo de Ontem”, chegando a livros de história como “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, de Daniel Jonah Goldhagen, e culminando nas análises da eleição norte-americana de 2016 (ou de qualquer eleição na Europa desde então): populistas e fascistas surgem por causa dos nossos piores sentimentos, não por geração espontânea.

Mas… Mas vou além. Essa é uma ideia tão difundida que, como é de regra para mentes críticas em casos assim, deve ser vista com um grão de sal, como se diz. Se nossos Hitlers internos apenas aguardam alguma faísca para darem as caras, há outra mensagem que o filme mostra de modo, creio, não intencional (ou talvez intencional, não sei bem: o novo Hitler se identifica com o Partido Verde, e muitos dos que apoiam o Führer redivivo o abandonam quando descobrem que ele matou um cachorro…). A desesperança é real e o nosso entorno está confuso — o Hitler do filme cai, aliás, numa cacofonia de emos e góticos, cachorrinhos fofos, programas de culinária na TV, turismo de massa, opiniões de sobra no Google… Há labirintos que nos parecem sem saída; confusos, nem sequer podemos, nos ensinam a mídia, nossos líderes e o blogueiro moderninho, sob risco de linchamento pelos Torquemadas da nova Santa Inquisição (Santa Inquisição, vocês sabem, era uma espécie de Facebook da Idade Média), emitir qualquer opinião fora dos cânones pré-estabelecidos por uma soi-disant elite que pensa as relações sociais como reflexo do próprio mundinho. O que falo e digo no bar da esquina, sempre querendo demonstrar correção e empatia, parece ter sido pensado e codificado em jantares descolados no Leblon, cheios de gente iluminada e professoral (como Tom Wolfe, morto recentemente, mostrou acontecer também com a elite de Nova York na cômica e assustadora reportagem-ensaio “Radical Chique”). Eis o que quero dizer: reduzir qualquer pensamento ou crítica a “nazismo” e dizer que somos Hitlers em potencial é também um maneira fascista de calar debates — uma inesperada vitória do “argumentum ad Hitlerum” sobre aquela categoria filosófico-jurídica que para mim talvez seja a mais necessária, e mesmo bela, de todas as ideias ocidentais: a liberdade de expressão (amplíssima e sem o cada vez mais comum “mas”, como em “sou a favor da liberdade de expressão, mas…”).

O Nazismo, disse o grande biógrafo de Hitler, Ian Kershaw, foi um “ataque às raízes da civilização”. E talvez haja mesmo um Hitler dentro de todos nós. Porém, há perguntas — difíceis — além daquelas evidentes feitas no filme. Se tudo é “preconceito”, “xenofobia” e “fascismo”, nada mais o é de verdade. Não reconhecemos o Hitler que retorna porque o diluímos e equiparamos a tudo, não porque ele exista sempre nos sótãos escuros das nossas mentes, e isso me parece um perigo maior do que alguma cegueira eventual: sempre haverá quem nos berre “Hitler está ao nosso lado”; contudo, se todos gritarem em uníssono mesmo quando ele não estiver realmente próximo, eu não ouvirei o aviso verdadeiro quando me for dado.

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