“A expressão “mulher-objeto” surgiu na
Europa, com as precursoras do feminismo, lá pelo final do século 18 e visava-se
a denunciar a condição relegada à mulher pelo machismo. A mulher considerada
apenas por ser bonita, a mulher-enfeite, a mulher como adorno da casa do homem,
como uma alfaia de cômodo. Pouco mais que um abajur ou um vaso de flores de
plástico.
A expressão ficou meio que adormecida no
limbo intelectual, restrita aos filósofos e ao ambiente das academias. No
entanto, com a disseminação do feminismo na segunda metade do século 20, que
inventou teorias de gêneros e queimou sutiãs em praça pública, a expressão
“mulher-objeto” caiu no gosto dos psicólogos, dos cronistas e redatores. Ganhou
as páginas dos jornais, os ciclos de conferências oficiais, os debates de
rádio, televisão, os lares e, sobretudo as discussões abiloladas dos botequins.
A expressão derivou para homem-objeto,
sociedade-objeto e outras mais. Qualquer palavra seguida do substantivo adjetivado
“objeto” tornou-se um depreciativo, um designador genérico de alguém ou algo
que perdeu a essência, para se tornar apenas aparência e casca.
Desde os anos 70 do século passado, tenho
lido aqui e acolá que estamos vivendo uma sociedade que empreendeu uma
trajetória ignóbil, anti-civilizatória, da essência para a aparência, do ser
para a coisa, da pessoa para o objeto. Ou seja, estamos numa dinâmica de marcha
à res. Res aqui no Latim, no sentido de coisa em oposição ao ser. O prefixo da
palavra REPÚBLICA (res pública), coisa do povo, como deveriam ser de fato todos
os bens geridos pelo governo, em que o monte é feito pelo sacrifício de muitos,
mas serve apenas ao interesse de meia dúzia.
Se observarmos bem, essa tal marcha do ser
para a coisa, da essência para a aparência, do sujeito para o objeto já ganhou
uma dimensão epidêmica, patológica, global, excedente em todas as suas
possibilidades, a tal ponto que acho até que poderíamos dar uma nova
qualificação ao senso social dominante.
Talvez já estejamos vivendo uma condição de
mulher-dejeto, de homem-dejeto, de sociedade-dejeto. Isso porque o mercado nos
transformou a todos em objetos de seus negócios. Hoje ninguém se orgulha de ser
pessoa, mas de ser consumidor, o intestino grosso de um sistema de produção sem
limites com uma descartabilidade desaforada. O que é paradoxal, pois estamos
num planeta de capacidade limitada, tanto no tocante ao fornecimento de
recursos naturais, quanto à capacidade de absorção de nosso lixo. O planeta vai
se transformando em aridez e monturo.
No entanto o que mais nos caracteriza como
sociedade-dejeto é a relação do povo com seus representantes políticos. No
fundo, aqueles que se apresentam como pretendentes a ser nossos representes nos
escalões do poder nos veem apenas como dejetos, como estrumes, estercos que
adubarão suas candidaturas com votos, que lhes concederão mandatos que darão
acesso às benesses da república transviada, que lhes permitirão agir sob o
escudo de suposta legitimidade.
A sociedade-dejeto seria assim uma espécie
de sucedâneo, um estágio mais adiantado da sociedade-objeto, num processo
evolutivo. Evolutivo, porque até a regressão é evolução quando se trata do
processo civilizatório. Uma sociedade avançando, em desabalada carreira, de
marcha à res.”
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