“Nosso processo civilizatório vem se dando
ao longo dos séculos numa relação de dominadores e dominados (a elite sobre a
massa) com maior ou menor grau de arrocho. Há, num extremo, momentos de
relativa liberdade e democracia e no outro o domínio ditatorial e até mesmo de
escravidão, a tal ponto de um ser humano se submeter ao outro e se tornar coisa
ou semovente. No Brasil colonial houve até o chamado Imposto sobre Venda de
Seres Humanos.
Uma das mídias mais persistentes e poderosas
da história da civilização ocidental é sem dúvida a Bíblia Sagrada. Dela
constam vários momentos de submissão extrema de um povo a outro, como é o caso
do Cativeiro da Babilônia. Os judeus (povos do Reino de Judá) foram vencidos
pelas tropas de Nabuconodossor II e levados para a Babilônia e ali serviram por
70 longos anos, como escravos. As primeiras gerações que nasceram no desterro
morreram sem conhecer a liberdade. Foram nesse período reduzidos à condição de
objetos de venda e troca. Coisa que se pode usar, abusar e dispor. Vivendo em
condições humilhantes, todo mundo era mão de obra cativa e até objeto de
degustação sexual. Sobretudo as mulheres e as crianças. Pedofilia não é uma
invenção dos padres do pós-revolução sexual.
Mas os judeus, detentores de elevada auto-estima, identidade cultural e uma crença inabalável de que Jeová haveria de retirá-los do jugo babilônico e devolvê-los ao antigo reino, criavam problemas de subversão a seus opressores. A estratégia dos babilônicos foi conceder uma parcela do poder de araque aos judeus. Assim, um dos supostos líderes dos escravos, um certo Zedequias , foi nomeado Rei Vassalo, para ajudar no controle dos escravos mais nervozinhos.
Há muitas formas de uma turma, mais
favorecida circunstancialmente, subjugar a outra. Normalmente é um pequeno
grupo dominando grandes massas. Pequenos grupos pensantes sobre grandes levas
de pessoas acéfalas. A ameaça e a intimidação e até mesmo a agressão física têm
se constituído instrumentos eficazes de dominação. No entanto, a tentação e a
dissuasão psicológica existem desde tempos remotos.
Uma tradicional oração cristã acerta na
mosca quando diz “livrai-nos das tentações”. A tentação é uma das formas mais
eficazes de subsunção e domínio. Ulisses, na Odisseia de Homero, só conseguiu
transpor a Ilha das Sereias, porque tapou o ouvido de seus marinheiros com cera
e exigiu que ele próprio fosse amarrado ao mastro do navio, com ordem de não
ser solto, mesmo que viesse a exigir a soltura. E de fato Ulisses, ao ouvir o
canto mavioso das tais sereias, exigiu que o soltassem. Mas os marinheiros, de
ouvidos tapados, não ouviram seus clamores. Continuaram remando e assim a
embarcação não se espatifou na pedreira, que era para onde a tentação das
sereias atraia os navegantes.
No filme “Vida de Insetos” (supostamente
infantil), em que há várias conotações da relação dominantes X dominados, há
uma cena antológica em que uma mariposa grita para outra: “resista, resista,
não olhe para a luz!” A mariposa que cedeu à tentação foi atraída pelas chamas
e morreu chamuscada. A mariposa mais bem pensante saiu-se ilesa.
O domínio pela força de um grupo exercida
sobre outro vem perdendo espaço nas sociedades contemporâneas. O hard power dos
antigos vem sendo gradativamente sendo substituído pelo soft Power. Hoje é
muito mais com jeito do que com força. Muito mais tentação do que imposição.
Se formos olhar, com as devidas licenças
poéticas (ou com os mutatis mutandis dos latinos e dos rábulas), nós,
brasileiros do século 21, não seríamos muito menos escravizados do que o povo
de Judá, ao reino da Babilônia, por volta do século 6 antes de Cristo. Mas hoje
a nossa escravidão é exercida sem o uso de funda, flecha ou arma de fogo. Tudo
na base da estratégia, da tentação e do convencimento. Penso que hoje existem
três elementos que sobressaem na vida cotidiana a nos manter no cativeiro, sem
reclamar: 1) a lábia dos políticos; 2) a tentação do consumo (por desejo e não
por necessidade); e 3) a telemática (informática, telefonia, videofonia,
redes sociais e todos os engenhos que brotam em profusão). A telemática pode
parecer um instrumento assessório das duas primeiras categorias. Mas na
verdade, em razão de sua pujança, ela assume a condição de uma categoria
autônoma.
Os políticos, com seu marketing estupefaciente,
conseguem fazer com que repassemos a eles a maior parte da força de nosso
trabalho, com retorno reles. Segundo alguns tributaristas, 73% do ganho de
nosso trabalho vão para o Estado. Ou seja, para um grupo que tem a expertise de
conquistar e se manter no poder, sem que contra isso rebelemos.
A tentação do consumo, esse desejo que nos
faz consumir não para viver, mas viver para consumir; a razão que nos leva a
comprar uma roupa não para nos agasalhar, mas para humilhar o próximo que não
pode ter uma roupa de grife, nos corrói as fibras do coração e boa parte de
nossa alegria de viver sem malícia. Não somos nós que escolhemos as marcas; mas
as marcas que nos escolhem. E ainda achamos bonito que isso seja chamado de
“liberdade de escolha”.
O tempo livre, que nos sobrara dessas duas
pragas, veio a telemática e nos roubou. Toda a parafernália eletrônica que
compõe a vida contemporânea acabou por nos surrupiar os instantes de lazer e
liberdade de que dispúnhamos. Os laptops, os iphones, os ipads, os celulares,
as redes sociais não nos dão sossego nem para dormir. Um aparelhozinho dá um
trinado e a gente acorda no meio da noite e levanta para ver de que ordem é a
última mensagem. Não há tempo para o filho, para o cônjuge, para os amigos.
Os capitães dessa indústria converteram o
resíduo de liberdade de que dispúnhamos em faturamento. Cada
mensagem é um cisco de dólar que cai na conta de algum nerd do Vale do Silício.
É como os banqueiros da Idade Moderna (na época da Renascença) que toda moeda
de ouro que passava por seus cofres era lixada cuidadosamente e pequenas partes
de ouro em pó passavam a fazer partes de suas fortunas.
Estão lixando a nossa alma para ampliar a
fortuna dos magnatas contemporâneos. Para nós das massas, fazer sucesso nessas
condições é como o antigo Zedequias da Bíblia que se sentiu bestamente
envaidecido com a sua nomeação de “Rei Vassalo dos judeus na Babilônia”. O
cativeiro da Babilônia é aqui e agora.”
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