Cicatrizes da cidadania


Rodolpho Motta Lima, Direto da Redação

Os recentes acontecimentos nas ruas do Rio de Janeiro, envolvendo conflito entre policiais, professores e o pessoal do Black Bloc, impõem-me um posicionamento. Afinal, sou professor e carioca, duas condições de que muito me orgulho.

Sérgio Cabral e Eduardo Paes têm, nos últimos tempos,  dominado o cenário político do Rio e vencido, com relativa facilidade, as eleições de que vêm participando. Várias razões explicam isso. Uma das principais, seguramente, tem sido a ausência de opositores que inspirassem, mais do que eles, o voto popular, dentro de  um contexto em que os políticos andam por baixo (infelizmente, porque a política é componente necessário em um jogo democrático).

Houve, porém, outras razões. Uma delas, a criação das UPPs  que, mal ou bem, mudaram (ou mascararam) a cara do Rio, fazendo da violência do tráfico algo menos terrível (ou menos visível). Eu mesmo colhi depoimentos de moradores do vizinho morro Dona Marta, que davam conta das mudanças positivas comandadas por Beltrame, secretário de Cabral, embora registrando que “sumiram as armas, mas permaneceram as drogas”.

Além disso, a política de alianças com Lula (e depois com Dilma) foi capaz de garantir ao estado e à cidade recursos que as anteriores administrações não obtiveram.  O governador e o prefeito surfaram nos êxitos e no dinheiro do Governo Federal.

Mas creio que esses motivos não se seguram mais. Acredito que fluminenses e cariocas estão preparados, agora, para navegar em outras águas, ainda que se acene com a manutenção do Beltrame na chefia da Polícia, ainda que se garanta o prosseguimento das UPPs, ainda que alianças pragmáticas sugiram a continuidade dos atuais elos políticos.  

Temos assistido, nos últimos tempos, a cenas lamentáveis no tratamento das reivindicações dos professores públicos, seja na esfera municipal ou estadual. As agressões perpetradas reeditam momentos sombrios de nossa história recente, trazem à memória comportamentos contra os quais lutaram todos os que estiveram nas ruas nos anos de chumbo.

Não dá para aceitar a truculência policial contra professores, a covardia dos gases malignos e das bombas e balas, e, também, um certo cinismo das declarações oficiais, que usam como pretexto as ações dos Black Bloks.

Não sou professor público. Minha condição de funcionário do Banco do Brasil vedava essa possibilidade. Sempre desempenhei o magistério fora o horário do Banco, e em instituições particulares. Mas sou, serei sempre, grato ao ensino público, desde a escola Sarmiento, na rua Vinte e Quatro de Maio até o Colégio Pedro II, na Barão do Bom Retiro, ambas no subúrbio do Engenho Novo, em que me criei.

Experimentei diretamente, como estudante, uma escola pública de qualidade, que abrigava então alunos de todas as classes sociais e lhes propiciava a continuidade do estudo para voos mais altos. Como professor, depois, presenciei a sua derrocada, pela incúria dos governantes e pela cumplicidade das autoridades condutoras do ensino. Transformou-se a educação em algo que, para ter qualidade (altamente discutível, em muitos casos), tinha que ser particular, tinha que ser pago.

E a escola pública, paradoxalmente, vem deixando cicatrizes na cidadania, um rastro demagógico de aberrações como “aprovação automática” e coisas do gênero. Não se discute que o objetivo de  “abrir vagas” na escola pública  será sempre  altamente meritório, mas é indispensável que essa disposição venha  acompanhada da fundamental busca da qualidade, que passa inevitavelmente pela valorização do professor. Do contrário, o que se terá  é algo bem parecido com o panorama na área da saúde: um jogo de cartas marcadas que, desmoralizando o público, valoriza o particular, inserindo a educação em uma lógica sinistra que passa pelo lucro dos tubarões de ensino por um lado, a perpetuação das elites, por outro.  Ironicamente, o ensino público vem servindo para manter acentuadas as desigualdades sociais. Quando se tentou, tempos atrás, algo realmente revolucionário – os CIEPs de Brizola -,  as elites trataram de transformá-los nas ruínas pedagógicas em que a maioria  hoje se transformou.

Claro que existem os centros de excelência na rede pública, verdadeiros bastiões que provam que é possível o ensino gratuito de qualidade. E é notório que muitos professores vivem por aí fazendo  milagres para suprir as precárias condições em que têm que trabalhar.  A bem da verdade,  também há muitos registros, aqui e ali, de investimentos na Educação, em diversos âmbitos, no plano federal e mesmo no Rio de Janeiro.  Isso nos inspira a considerar que nem tudo está perdido, porque depende mesmo, no fim, de uma vontade política comprometida com o social.  

Pode haver exageros nas últimas reivindicações dos professores, como fruto do jogo de pressões e contrapressões que caracterizam os momentos de negociação. E será sempre lastimável que se deixem sem aulas os alunos mais carentes. É também óbvio que os problemas de nossa Educação não passam apenas pelos professores e suas folhas salariais, porque atingem em cheio a responsabilidade de toda a sociedade, com suas famílias omissas no processo de formação dos jovens e sua mídia coberta de vulgaridades e de despreocupação cultural, que leva à deformação.  

A educação brasileira, a despeito de tudo, vem dando seus saltos positivos. Há setores efetivamente preocupados em fazer dela um vetor de combate à exclusão. Mas será sempre  injustificável  a violência no lidar com o magistério. Quem trata a educação como um caso de polícia – a mesma polícia que mata pessoas nas UPPs “pacificadas” – está beirando perigosamente o fascismo, o que merece , a meu ver, todo o repúdio dos cidadãos conscientes.” 

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