Charlton Heston no filme Os Dez Mandamentos |
Matheus Pichonelli, CartaCapital
Imagine a cena. O sujeito chega à praça com seu terno de
domingo, tira a poeira no livro sagrado e começa a espalhar pela região
toda a verdade sobre o universo. “Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça:
os ímpios estão por toda a parte”. “Sodoma e Gomorra será castigada”.
“Os cavaleiros do Apocalipse virão montados em charutos cubanos e
camisetas do Che Guevara”. “As mulheres são belas, mas nelas reside a
perdição: desviai os olhares e centrai as atenções na Palavra de mestre
Olavo, cujas ceroulas não vos despertarão a volúpia da lascívia”.
“Arrependei-vos de vossos pecados: ofereças em sacrifício o filho de
Abraão e de Amarildo, com o punhal para um e a trava da bicicleta para
outro”. “Manter-se-ão em vigília, com armas e spray de pimenta: não
sabemos quando virá o Senhor, mas ele não ficará satisfeito em saber que
transformamos seu templo de vendilhões em palcos para distribuição de
renda e concessões à pederastia”. “Vigiai o sagrado direito de ser livre
para agredir a tudo o que não vos ensinastes”.
De tanto pregar, o sujeito torna-se verbo. E, como dois e dois são quatro, o verbo torna-se luz. Prega, logo existe e ilumina os candelabros. É não só o obreiro, mas o caminho, a verdade e a vida. Sim, é o verbo escarrado da terra.
É o próprio deus. Um deus que sabe os caminhos, que decorou as passagens para a salvação e, por posts e podcasts, consegue separar o joio do trigo, os vilões e os mocinhos, a turma do fundão, pecadora, e da turma da frente, vigilante, CDF, disposta a espalhar o bem aos cidadãos com cajados contra impurezas do corpo, as travas de bicicletas contra o pequeno assaltante e as lâmpadas fosforescentes contra quem não respeita seu direito de não suportar a libertinagem.
Por ser deus, o sujeito tem o monopólio do Verbo. E o Verbo é elástico. Seu livro está na seção da literatura de auto-ajuda, a auto-ajuda que salva e servirá como oráculo, uma espécie de Terceiro Testamento. Nele está o caminho, a verdade, a vida e a dieta da proteína. Nele ensina-se, por exemplo, a guardar domingos e feriados e não comer caviar em dias santos, que são todos. Para entrar em seu reino, é preciso renunciar às iguarias e aos charutos cubanos, ainda que o infiel tenha tanto apreço ao sistema de opressão em ilhas caribenhas quanto pelo Fuleco, o mascote da Copa. Não importa: não é preciso falar em nome do Diabo para ser cooptado por ele: se profanou a ação educativa das travas da bicicleta é porque o infiel, mesmo sem saber, tem o corpo dominado pelo Maligno.
Nos dias atuais, pensa o pregador, para identificar os desordeiros basta uma única régua: quem leu ou não a sua mensagem da Salvação, a sua interpretação sobre a Origem do Mal que se tornou o próprio balizador do Mal. Quem não leu O Livro é, sem apelação, Hipócrita. Ou defensor de ditaduras. Ou um patrocinador do banho de sangue ao qual estamos todos mergulhados.
Mas deus é misericordioso. Espera paciente pelo filho pródigo, o filho que não ouviu a palavra, que fugiu do labor das terras ancestrais e caiu em tentação: gastou toda a sua herança em literatura esquerdista e discursos politicamente corretos, sobretudo relacionados à segurança pública. “Vim para salvar o doente e não o são”, diz o Salvador, e assim ele segue, a Bíblia debaixo dos braços, a pregar nos hospitais, onde encontra-se o rebanho mais vulnerável. Ali, identifica a mulher pecadora, espancada, envergonhada, traumatizada por uma experiência pessoal: uma casa invadida, um assalto a mão armada, a vida da família em perigo. O demônio do politicamente correto diz que qualquer dor merece respeito. E que o tempo e o silêncio não são omissão, mas sinais de deferência.
Mas deus é deus. Pode arrebentar as portas da consideração aos pontapés e se armar com a trombeta da ironia divina para arrebanhar o fiel e a sua alma com base na sua misericórdia e no gracejo de tio da Sukita: “Você, minha ovelha perdida, é muito talentosa e muito bonita. É um desperdício que tenha se desgarrado. Venha. Eu trago limão. Venha fazer uma limonada na casa do Senhor, que é a minha casa”.
Assim, com os olhos roxos e o corpo surrado, a ovelha desgarrada descobre que, tal qual uma Pequena Princesa, ela é responsável por aquilo que cativa. “Sou teu senhor e teu deus e em verdade vos digo: você e todos os que comem caviar são culpados por serem violentados, agredidos, esmurrados”.
Com o cajado ao alto, o pregador sobe no púlpito a perguntar se a mulher voltará a pecar. Desfere o primeiro golpe, uma limonada espremida no olho da pecadora. Tudo para o seu seu bem. “Vou segurar seus braços, mostrar suas feridas, suas chagas e sua cruz para dizer na frente de todos que isso é culpa sua, que não me ouviu e saiu por ai defendendo o regime errado, o regime do caviar, mesmo sabendo que este é o alimento dos ímpios. Vou dizer que suas feridas são resultado da sua falta de consciência. Vou chama-la de bonitinha, mas ordinária e ignorante por não entender os reais problemas do céu e da terra. Mas que o teu sofrimento é a chance de tua salvação”.
E continua, tal qual um professor que se frustra diante da sala ao saber que os alunos não leram o livro do tema da aula. Mas deus, lembremos, é misericordioso e paciente. Sabe que o tempo está próximo e que não há tempo a perder. Saca do manto sagrado o livro sagrado, com uma dedicatória para a ovelha que apanha por nada entender dos reais problemas do seu país.
O senhor limpa as mãos e vai a público dar o nome dessas ovelhas desgarradas que protegem o pecador e incentivam o pecado do qual agora são vítimas. E expõe seu nome. Seu nome e sobrenome. Só não dá o endereço dessas ovelhas, embora torça profundamente para que todos os coitadinhos que elas defendem voltem e arrebentem as suas portas para que provem que nesta Terra só há um senhor e que este senhor esteve certo o tempo todo. Mas nunca é tarde para aprender, diz o pregador, nem para tomar a decisão correta. Ele é misericordioso e sabe tirar lições das tragédias pessoais. “O meu livro é a sua limonada, e vou adoçá-lo com pregos e parafusos. Saia das sombras. Levanta-te e anda. Venha para o lado de cá. O lado certo”.
A tentativa de conversão é exibida ao vivo, com intervalos para o autojabá: “a salvação está à venda nas melhores livrarias”. Na plateia, o som das estocadas com a trava sagrada da bicicleta é abafado por aplausos empolgados dos que se admiram da coragem de se dizer não uma verdade, mas A Verdade. Os aplausos são muitos, pois a messe é grande e os operários são uma legião. Não é por menos. Deus, além de misericordioso, é um ótimo vendedor de limão."
De tanto pregar, o sujeito torna-se verbo. E, como dois e dois são quatro, o verbo torna-se luz. Prega, logo existe e ilumina os candelabros. É não só o obreiro, mas o caminho, a verdade e a vida. Sim, é o verbo escarrado da terra.
É o próprio deus. Um deus que sabe os caminhos, que decorou as passagens para a salvação e, por posts e podcasts, consegue separar o joio do trigo, os vilões e os mocinhos, a turma do fundão, pecadora, e da turma da frente, vigilante, CDF, disposta a espalhar o bem aos cidadãos com cajados contra impurezas do corpo, as travas de bicicletas contra o pequeno assaltante e as lâmpadas fosforescentes contra quem não respeita seu direito de não suportar a libertinagem.
Por ser deus, o sujeito tem o monopólio do Verbo. E o Verbo é elástico. Seu livro está na seção da literatura de auto-ajuda, a auto-ajuda que salva e servirá como oráculo, uma espécie de Terceiro Testamento. Nele está o caminho, a verdade, a vida e a dieta da proteína. Nele ensina-se, por exemplo, a guardar domingos e feriados e não comer caviar em dias santos, que são todos. Para entrar em seu reino, é preciso renunciar às iguarias e aos charutos cubanos, ainda que o infiel tenha tanto apreço ao sistema de opressão em ilhas caribenhas quanto pelo Fuleco, o mascote da Copa. Não importa: não é preciso falar em nome do Diabo para ser cooptado por ele: se profanou a ação educativa das travas da bicicleta é porque o infiel, mesmo sem saber, tem o corpo dominado pelo Maligno.
Nos dias atuais, pensa o pregador, para identificar os desordeiros basta uma única régua: quem leu ou não a sua mensagem da Salvação, a sua interpretação sobre a Origem do Mal que se tornou o próprio balizador do Mal. Quem não leu O Livro é, sem apelação, Hipócrita. Ou defensor de ditaduras. Ou um patrocinador do banho de sangue ao qual estamos todos mergulhados.
Mas deus é misericordioso. Espera paciente pelo filho pródigo, o filho que não ouviu a palavra, que fugiu do labor das terras ancestrais e caiu em tentação: gastou toda a sua herança em literatura esquerdista e discursos politicamente corretos, sobretudo relacionados à segurança pública. “Vim para salvar o doente e não o são”, diz o Salvador, e assim ele segue, a Bíblia debaixo dos braços, a pregar nos hospitais, onde encontra-se o rebanho mais vulnerável. Ali, identifica a mulher pecadora, espancada, envergonhada, traumatizada por uma experiência pessoal: uma casa invadida, um assalto a mão armada, a vida da família em perigo. O demônio do politicamente correto diz que qualquer dor merece respeito. E que o tempo e o silêncio não são omissão, mas sinais de deferência.
Mas deus é deus. Pode arrebentar as portas da consideração aos pontapés e se armar com a trombeta da ironia divina para arrebanhar o fiel e a sua alma com base na sua misericórdia e no gracejo de tio da Sukita: “Você, minha ovelha perdida, é muito talentosa e muito bonita. É um desperdício que tenha se desgarrado. Venha. Eu trago limão. Venha fazer uma limonada na casa do Senhor, que é a minha casa”.
Assim, com os olhos roxos e o corpo surrado, a ovelha desgarrada descobre que, tal qual uma Pequena Princesa, ela é responsável por aquilo que cativa. “Sou teu senhor e teu deus e em verdade vos digo: você e todos os que comem caviar são culpados por serem violentados, agredidos, esmurrados”.
Com o cajado ao alto, o pregador sobe no púlpito a perguntar se a mulher voltará a pecar. Desfere o primeiro golpe, uma limonada espremida no olho da pecadora. Tudo para o seu seu bem. “Vou segurar seus braços, mostrar suas feridas, suas chagas e sua cruz para dizer na frente de todos que isso é culpa sua, que não me ouviu e saiu por ai defendendo o regime errado, o regime do caviar, mesmo sabendo que este é o alimento dos ímpios. Vou dizer que suas feridas são resultado da sua falta de consciência. Vou chama-la de bonitinha, mas ordinária e ignorante por não entender os reais problemas do céu e da terra. Mas que o teu sofrimento é a chance de tua salvação”.
E continua, tal qual um professor que se frustra diante da sala ao saber que os alunos não leram o livro do tema da aula. Mas deus, lembremos, é misericordioso e paciente. Sabe que o tempo está próximo e que não há tempo a perder. Saca do manto sagrado o livro sagrado, com uma dedicatória para a ovelha que apanha por nada entender dos reais problemas do seu país.
O senhor limpa as mãos e vai a público dar o nome dessas ovelhas desgarradas que protegem o pecador e incentivam o pecado do qual agora são vítimas. E expõe seu nome. Seu nome e sobrenome. Só não dá o endereço dessas ovelhas, embora torça profundamente para que todos os coitadinhos que elas defendem voltem e arrebentem as suas portas para que provem que nesta Terra só há um senhor e que este senhor esteve certo o tempo todo. Mas nunca é tarde para aprender, diz o pregador, nem para tomar a decisão correta. Ele é misericordioso e sabe tirar lições das tragédias pessoais. “O meu livro é a sua limonada, e vou adoçá-lo com pregos e parafusos. Saia das sombras. Levanta-te e anda. Venha para o lado de cá. O lado certo”.
A tentativa de conversão é exibida ao vivo, com intervalos para o autojabá: “a salvação está à venda nas melhores livrarias”. Na plateia, o som das estocadas com a trava sagrada da bicicleta é abafado por aplausos empolgados dos que se admiram da coragem de se dizer não uma verdade, mas A Verdade. Os aplausos são muitos, pois a messe é grande e os operários são uma legião. Não é por menos. Deus, além de misericordioso, é um ótimo vendedor de limão."
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