Marcelo Carneiro da Cunha, Terra Magazine /
Zagueiro
“Estimados leitores, pois que hoje, 9 de novembro, é a data de uma
das maiores efemérides da história do mundo ocidental. Ah, e sim, também é o
dia em que caiu o Muro de Berlim dando fim à Guerra Fria.
Nesse dia, há um ano, saímos de casa na
madrugada escura e fria, a Baronesa Carneiro da Cunha e eu, para irmos até ali
na maternidade São Luiz para buscarmos o bebê que a cegonha havia deixado para
nós. Muito tradicionais somos, baronesa e eu.
Desde então, estimados leitores, reina aqui
em casa, de maneira muito mais absolutista do que qualquer Bourbon, Manuel I, o
Venturoso.
Olhando para o nosso infante, penso que
cresci em um mundo onde havia discos de vinil, televisor preto e branco sem
controle remoto, e a gente ainda não vinha acoplado a um sofazão. Havia
jornais, daqueles em papel, e os canais de televisão eram rigorosamente dois, e
eu nunca soube o que passava no outro.
O cinema era em tecnicolor, e não havia
cinema de shopping, ou shopping. A gente comprava algum disco recém lançado do
Pink Floyd, dos Beatles, ou dos Stones, e ouvia até a agulha rachar.
Como faço para explicar para um menino do
século 21 o que era uma agulha?
No meio de tanta escassez de quase tudo,
havia livros. Chegando em casa, eu não tinha amplificadores de Ipod, não tinha
tevê com milhares de canais, muitas cores e polegadas em flatscreen smart. Não
tinha computador e não tinha internet. Eu chegava em casa e ia jogar bola ou
ler livros sobre a casa de árvore, um piso de casa de árvore, que eu havia
construído sobre a ameixeira no quintal. Como eu faço pra explicar para um
menino do século 21 o que seja uma ameixeira?
Eu lia livros para afastar o tédio da
cidade pequena onde vivia. Meu pai tinha estantes cheias de livros, e eles
incluíam Lobato, Machado, Faulkner, Hemingway, Proust, Hasek, B.Traven, os
irmãos Grimm.
Eu tenho tudo isso nas minhas estantes, mas
o Manuel vai entender o que é e para que serve uma estante?
Pais do século 20 sentem um medo real de se
tornarem, como os pandas e os CD players, obsoletos, muito antes de o seu real
tempo de uso ter sido cumprido.
Meninos do século 21 não conhecem outra
velocidade que não essa em que vivem, e eu sinto que ela pode ser simplesmente
demasiada para que a gente consiga ficar se olhando, seja frente e frente ou
pelo retrovisor, para a gente continuar a fazendo sentido, uma para o outro,
pelas décadas que ainda nos sobram.
Pais se incomodam quando pensam que algumas
coisas que foram importantes para alguns deles venham a desaparecer sobre a
Terra, tal qual o Palmeiras, ou livros. Até agora ele demonstra adorar
livros. Mas ele adora qualquer coisa que possa abrir e fechar, e isso inclui
gavetas, caixas de sapatos, janelas e geladeiras. Livros?
O que eu penso, e compartilho com meus
estimados leitores, enquanto o Manuel festeja o seu primeiro aniversário com a
gente, é que precisamos combinar o que a gente vai preservar, se não por real
necessidade prática, ao menos como ponte entre o tempo de um e o tempo do
outro, nesse esforço que as gerações precisam fazer se não quiserem criar
distancias intransponíveis.
Penso que nós, humanos, somos linhas, não
pontos. Precisamos saber o que vem antes, e o que talvez venha depois. Os
livros existem para nos dar essa sensação de continuidade, de que houve
Sófocles, e houve Shakespeare, e houve Swift, e houve Machado, e houve e há
tanta coisa que é impossível que assim, nonada, pare de haver.
É isso que eu penso enquanto o Manuel se
lambuza de bolo, caros leitores. Ele apenas hoje descobriu o que é um bolo, de
blueberry e feito pelo boleiro da casa. Penso que bolos são meio como livros.
Se a gente gosta de um, termina por gostar do outro.
Penso, porque espero que seja assim, que é
exatamente assim que será. Nessa casa não vai faltar uma coisa nem outra, é o
que eu prometo.
Por via das dúvidas estou estocando
blueberry, que também se chama mirtillo e reduz os radicais livres, alguém me
falou. Radicais livres. Isso, no século 20, eu tenho quase certeza de que não
existia. Mas o século 20, e isso é o que a gente precisa lembrar, e eu percebo
mais fortemente olhando para o Manuel, acabou. Viva o novo século então, e
construamos estantes para ele. Estantes, livros e bolos, e com tudo isso por
aí, algo me diz que estaremos bem.”
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