Eberth Vêncio, Revista Bula
“O sujeito já era. Pode avisar a família.”
Feito o diagnóstico, o doutor arrancou as luvas e foi atender outro paciente
que bebera soda cáustica com campari, e agora vomitava feito o diabo (não se
sabia ao certo se sangue, se bile ou se campari), incomodando a todo mundo,
sem, contudo, dar um fim aos seus cruéis dilemas existenciais.
Um amigo de Azor (era este o nome do
falecido) foi o primeiro a saber do óbito e a choramingar. Sem rodeios, sem
classe, enxugou as lágrimas do narigão na manga da camisa e telefonou para a
esposa do morto comunicando a tragédia tintim por tintim. Teve a impressão de
ouvir gargalhadas do outro lado da linha (certamente, um equívoco seu), junto
com ruídos de algum objeto se quebrando, quem sabe um vaso derrubado com o
impacto do cotovelo e da notícia. Tem gente que até gosta do papel, mas, é
péssimo dar as más notícias.
O velório foi mais rápido e animado que o
habitual, com equipe carpideira, discursos inverídicos, a meninada aprontando
correria pelos corredores, mulheres desfalecendo, a viúva sendo cobiçada pelos
velhacos (entrada nos trinta, ela apetecia a libido da homarada), e piadistas
incorrigíveis descontraindo os bastidores da dor. Funerais custam os olhos da
cara, vocês sabem. Quiçá ainda pudéssemos enterrar os nossos queridos em covas
rasas, embrulhados em lençóis limpos, à sombra dos carvalhos. Por causa de
profundas restrições orçamentárias, o corpo de Azor foi colocado num caixão
popularesco, o mais barato do mórbido portfólio oferecido pelos papa-defuntos,
confeccionado com ripas de compensado recicladas a partir de caixotes de
tomate. Para a sorte de Azor, esta particularidade salvaria a sua vida.
Isso mesmo. Acontece que Azor não morrera. Catalepsia.
Eis o nome do fenômeno patológico. Ele bem que parecia um morto, condição que
escapara à avaliação do médico veterano que penava no furdunço daquele
pronto-socorro municipal, o qual mais parecia uma sucursal do inferno do que um
hospital.
Mergulhado em silêncio absoluto e na densa
escuridão, Azor logo percebeu que fora enterrado vivo pelos seus pares. Controlou
o pânico e o fôlego a fim de poupar oxigênio e percebeu que a bela esposa
(amava tanto aquela mulher) cumprira o prometido, ao colocar no bolso direito
da calça o velho canivete com cabo de madrepérola herdado do seu avô materno,
instrumento com o qual enfrentara e vencera um queixada (parente próximo do
javali) nos anos 1930. Utilizando aquela ferramenta de forma improvisada,
cavoucou a tampa do frágil invólucro de madeira até fazer nela um orifício,
escapulir e cair num outro espaço morto, também escuro, desta feita uma
prateleira feita de alvenaria.”
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