Alberto Villas, CartaCapital
A gente se divertia abrindo aquilo cuidadosamente e vendo nas páginas amareladas do jornal Estado de Minas coisas que aconteceram há um ano, quando minha mãe embalou tudo.
“Enquanto
dezembro não chegava, não havia o menor sinal, o menor vestígio de Natal na
cidade. Hoje é diferente, hoje em setembro a primeira fornada de panetone já
chegou aos supermercados, em outubro os shoppings começaram a se enfeitar e em
novembro ho ho ho, é Natal! O meu Natal de criança começava lá pelosdias 5, 6,
7 de dezembro quando meu pai pegava uma escada enorme e subia até o sótão da
minha casa em Belo
Horizonte.
Aos
poucos ele ia descendo os caixotes de madeira, um a um. Lá dentro bem
embrulhadinhos em folhas de jornal estavam os personagens do presépio, as bolas
da árvore, os enfeites e os discos de vinil com músicas natalinas. Sim, os
discos ficavam embalados junto com tudo o que tinha a ver com Natal. Caixotes
empoeirados no chão, meu pai – o bom velhinho – ia desembalando peça por peça.A gente se divertia abrindo aquilo cuidadosamente e vendo nas páginas amareladas do jornal Estado de Minas coisas que aconteceram há um ano, quando minha mãe embalou tudo.
Eram notícias de JK, da cadela Laika, de
Nikita Khruschov, de João XXIII, de João Gilberto, Gilmar, Bellini,
Nilton Santos, Zito, Orlando, Didi, Pelé, Vavá e Zagalo. Notícias da
estonteante Adalgisa Colombo, nossa Miss Brasil, quase Universo. A gente se
divertia até com as previsões para o ano que não tinha começado – 1958 – e
agora já era passado.
O clima de Natal naquela casa continuava
quando o meu pai chegava do Mercado Central com um balaio cheio de
pêssegos e figos verdes que a minha mãe passava dias descascando para fazer
doce em calda até ficar com a mão preta de nódoa.
O clima aumentava quando ele ligava para as
Estâncias Califórnia encomendando nozes, castanhas, avelãs, um garrafão de
vinho e uma caixa de uvas Niágara.
De noite o meu pai sentava com os filhos em
volta da mesa colonial que ficava na copa para, juntos, escrevermos a carta
para o Papai Noel. A lista era longa e ele dizia sempre que o bom velhinho não
tinha muito dinheiro e que era preciso pedir coisas que estavam ao seu alcance
porque eram milhares de crianças no mundo que precisavam ser atendidas. Uma
bicicleta Monark, uma boneca Suzy, um par de patins, um kit Xerife com
revólver, cartucheira, colete e estrela… Todo ano pedíamos soldadinhos de
chumbo, um jogo chamado Xadrez-Chinês e um outro chamado O Pequeno Químico.
Os últimos preparativos eram quando minha
mãe pegava uma tigela com açúcar e canela e começava a passar as fatias de pão
de rabanada no ovo e depois no açúcar com canela e o meu pai cobria o peru com
um pano de prato e levava para assar na Padaria Savassi. Os sapatos engraxados
ao pé da árvore, as luzinhas piscando pela casa inteira e o cheiro da farofa
que iria dentro do peru era o toque final.
De repente o Natal chegava de verdade. O
meu pai pegava uma flanelinha e ia desempoeirando cada disco de vinil que era
testado na radiola. Quando ouvíamos Carlos Galhardo cantando “Eu pensei que
todo mundo fosse filho de Papai Noel e assim felicidade eu pensei que fosse uma
brincadeira de papel…” era sinal de que a noite de Natal estava começando.
O sonho dos meus Natais nunca acabou, nem
mesmo naquele 20 de dezembro quando eu e meu irmão passamos pelo jardim pisando
na grama e nos estrepando nas roseiras, escalamos um muro de pedra e espiamos
pela janela do escritório do meu pai – que passava os dezembros com a porta
trancada – todos aqueles presentes empilhados no canto esperando talvez o papel
de presente. Estavam lá a boneca Suzy, o par de patins, o Xadrez-Chinês, o
Pequeno Químico, os soldadinhos de chumbo, o kit Xerife e uma patinete. Sim,
uma patinete. Aquele ano não era uma bicicleta Monark, era uma patinete.”
Foto: Patrícia Oliveira
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