“De vez em quando eu morro. As noites são quase todas
assim: agitadas, pegajosas, mescladas com suor e desespero mesmo nos dias mais
frios. Padeço dos piores pesadelos e eles se repetem. Os roteiros são
parecidíssimos, cópias das cópias, mas não consigo me acostumar, muito menos,
me afeiçoar a eles.
Sou duro feito diamante, mas eu sofro. Tenho cá minhas
fraquezas. A morte me visita, de repente, travestida em nuances abjetas,
detestáveis, escabrosas. Faca na barriga, veneno no cálice, ar injetado na
veia, arame na traqueia, afogamento numa bacia sanitária, estilete na jugular,
disparos nas têmporas à queima roupa, queimado vivo com querosene, linchamento
com porretes.
Noite sim, noite não, eu morro. Eu e a foice, enfim,
sós, para a minha mais completa miséria. Ressuscito aliviado assim que os
primeiros raios de sol fincam o escuro do quarto. Sinto-me mais isolado e desolado
que a cadela Baleia nos quintais de Graciliano Ramos em "Vidas
Secas". Aliás, eu, assim como as folhas e os dias, estou secando a olhos
vistos. Já perdi treze quilos, uns trezentos amigos e quase toda a parentalha. Se
minha mãe não tivesse morrido de desgosto enquanto eu estava foragido e
ocultado em Pasargada, seria a única a me adular, a oferecer o seu colo
caquético para eu recostar a cabeça.
Nas últimas semanas, a imprensa, os paparazzi e outros
putos têm feito campana na porta de casa, no escritório da empresa, nos
corredores azuis do Congresso. Se pudesse, com a autoridade dos cento e
cinquenta mil votos recebidos nas urnas, eu esmagava os jornalistas, moia suas
carnes, ossos e as "notícias quentes de última hora". Bando de
carcarás. Eu juro envenená-los com a minha própria carniça. Vão ver só.
Virei figurinha carimbada nos magazines. A revista
"Veja", há tempos não vê um bandido mais pernicioso do que este vos
escreve. Nos dizeres da "Carta Capital", sou o campeão brasileiro dos
pecados capitais. A "Piaui" quer me mandar a PQP. O Jô deseja-me
preso, já. Sou o anti-herói da vez, um Judas trajando verde e amarelo. Sou o
elo entre a maldade e o capeta. A opinião pública adoraria crucificar-me. Agora
sinto na carne o que passou o bom Jesus ao ser trucidado pelos seus
inquisidores. Nunca antes na história das injustiças cometidas contra um só
homem houve tamanha esculhambação.
Minha bela esposa — olhos verdes como cédulas de cem
patacas, a tez sedosa como dinheiro recém saído do prelo — virou "musa
nacional da corrupção" nos dizeres dos malditos jornalistas. Confessou-me
foi sondada por meia dúzia de revistas masculinas interessadas na contratação
de ensaios fotográficos sensuais alusivos a "Operação Mamãe Eu Quero"
da Polícia Federal. Aliás, quem batiza as operações da PF? Quem, de forma
absolutamente brutal e desumana, decide arrombar com uma marreta a fechadura da
porta da frente de uma residência às cinco horas da manhã? Quem escolhe o
cardápio azedo que é servido pelos carcereiros na cela especial que, de
especial, possui apenas os ódios particulares de seus ocupantes temporários?
Sim. Eu vacilei. Sinto-me o mais competente dos
trouxas. A campanha avassaladora, sub-reptícia, para fazer de mim um bode
expiatório não para de avançar. Creiam: vou abrir a boca na hora certa. Sou
apenas a ponta de um iceberg no copo de uísque de toda essa corja.
Admito que errei, mas, quem dentre vós jamais o
fizeste? Atire a primeira moeda quem nunca sonegou! Meu pai já errava, quando
principiou a jogatina subterrânea no século passado. Meu pai, bom filho que era
(que Deus o tenha) deu sequência aos negócios tolerados da família, mantendo
sempre um bom relacionamento com o Poder, ao ponto de batizar primogênitos de
delegados, secar garrafas de champanhe com a juizada, receber títulos
honoríficos nos parlamentos, e virar nome de praça, com direito a busto de
bronze e tudo mais.
À noite, na cama, quando fecho os olhos, fico
totalmente a mercê dos meus algozes. Às vezes, morro mais de uma vez dentro do
mesmo pesadelo. Sabem lá o que significa isto? Onde foi que eu errei? Repetindo
o Rabi: por que me abandonaste, Senhor?
Nada como um dia após o outro. Quem ri por último ri
melhor. O bem vence no final. São provérbios desgastados, porém, alentadores, e
que eu sigo a murmurar a fim de amortecer a revolta contra os companheiros.
Deus é testemunha do quanto ralei para chegar até
aqui, Deputado Foderal campeão de votos no meu Estado, uma das maiores fortunas
do país de acordo com a "Revista Fortune", a "Caras" e os
relatórios do Ministério Público.
É Natal. Ninguém mais, além da leitoa assada sobre a
mesa, sorri para mim, mesmo com uma enorme maçã enterrada na bocarra. Até mesmo
Raimunda, a cozinheira analfabeta que eu importei do Maranhão (raio de
mulher!), disse que não volta depois do feriadão. Minha fogosa esposa, futura
mãe dos filhos que nem tive ainda, não sabe por quanto tempo resistirá ao
assédio das revistas pornográficas, contudo, antes de me abandonar às vésperas
do Natal, deixou escapulir que será âncora num programa de entretenimento e
joguinhos burros na TV aberta.
O céu está fechado, o clima está fechado, o banco está
fechado e as minhas contas obstruídas. No meu céu solitário, nuvens carregadas.
Carrego nos ombros todo o arrependimento de ter sido pego com as mãos na cumbuca,
de cair nas escutas autorizadas e nas desautorizadas também. Sinto-me mal como
um carrasco ao decapitar a própria genitora.
Agora mesmo tive outro sonho violento. Novamente,
eu morria. Desta feita, a execução deu-se enquanto eu dormia: uma estaca de mogno
cravada no coração (feita com uma galha daquele lote de madeira apreendida,
inadvertidamente, pelos homens do Ibama na minha gleba amazonense) de cima para
baixo, de surpresa, covardemente, como se eu fora um vampiro.
Morte de cachorro
sem dono. Execução aplaudida em pé pela sociedade, e comemorada, com reservas,
pelos meus pares nos negócios paralelos, companheiros do temporariamente
desorganizado crime organizado, comparsas do colarinho branco respingado com
meu sangue escarlate. Enquanto eles brindam espumantes no reveillon, a minha
alma late nos portões do paraíso. Estará Deus em casa?”
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