Paulo Costa Lima, Terra Magazine / Blog do
Paulo Costa Lima
“Olhe aqui pessoal: vocês têm mesmo que
morar nesse lugar sem calçamento com o esgoto escorrendo a céu aberto…
e com o tempo vão se acostumar de ver as
crianças pulando essa sujeira e se misturando com ela, não vai dar pra evitar
as doenças;
o pai, se ainda estiver em casa, vai passar
longos períodos sem trabalho ou fazendo bico, vai ficar agressivo, talvez
comece a beber e não pare…
a mãe vai batalhar numa empresa de limpeza,
oito horas todo dia, mais três de ônibus, só vai chegar de noitinha…
a escola não vai ser muito boa, pra falar a
verdade, tudo indica que a educação será péssima…
até aí, são apenas os fatos de uma
sociedade muito desigual,
e que vão ter que circular pelas ruas vendo
gente esbanjar dinheiro em carrões e caminhonetes sem praticamente nenhuma
esperança de reversão?
e que, na televisão, apenas os ricos e seus
valores serão celebrados?
e que, seus filhos, serão as vítimas de um
amanhã incerto em tudo, menos na promessa de desigualdade?
e que até mesmo os discursos de
transformação pedirão paciência de algumas décadas e respeito aos contratos –
“e nós assinamos algum contrato para sermos
miseráveis?”
não tem outra saída: se a emancipação não
for gradativa acaba em alguma espécie de golpe de direita (o militar caiu de
moda, mas tem o midiático e o jurídico como opções pós-modernas)
mas isso não é justamente parte do problema
— a aparente falta de alternativas ao lucro? e o aumento exponencial da avidez…
será que essa gradatividade é tão
inevitável assim? lembra de quando a gente falava em queimar etapas?
e, se for assim, como é que a sociedade vai
conseguir mantê-los quietos e conformados achando que a vida é isso mesmo?
tem que ser uma prática extremamente eficaz
de repressão tripla: do bom senso, da auto-estima e da coragem pra reagir – de
uma vez só;
para aceitar viver assim e não morrer de
raiva com as injustiças, tem que acreditar que é inferior mesmo;
ou então engolir algum dos discursos
manhosos de que as coisas vão mudar, já estão começando…
e a coragem para reagir tem que ser
transformada no espírito de ‘levar vantagem’, na aceitação tácita de que
corruptos cobrem 300.000 reais por atos de governo;
e as máquinas de reprodução de discurso,
seja religioso ou político, se encarregarão de convencer até a folhagem da
floresta amazônica;
peraí não falsifique tudo, não é apenas
discurso é política de financiamento e inclusão de consumidores de baixa renda…
mas com gradatividade: e aí, se essa
repressão falhar, mesmo que por algum tempo, milhares, milhões, vão perceber
que a coisa toda é artificial e forçada;
e vão imaginar alguma forma de reagir a
essa violência cotidiana sem propósito e justificativa;
surgirão novos líderes num piscar de olhos;
não as formas de violência da nossa guerra
urbana, uma espécie de suicídio social;
outro tipo de coisa: uma violência proativa
e transformadora de quem não aceita mais o cabresto da realidade, de quem sabe
seu destino…
os moradores de rua se transformarão em
ativistas;
de quem tem certeza de que Deus não seria
Deus se compartilhasse dessa farsa;
a violência pacificadora da exigência de
oportunidades e dignidade para todos já;
e mais não saberia dizer — seria uma
situação nunca dantes na história desse país.”
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