Deus não seria Deus se compartilhasse dessa farsa




“Olhe aqui pessoal: vocês têm mesmo que morar nesse lugar sem calçamento com o esgoto escorrendo a céu aberto…

e com o tempo vão se acostumar de ver as crianças pulando essa sujeira e se misturando com ela, não vai dar pra evitar as doenças;

o pai, se ainda estiver em casa, vai passar longos períodos sem trabalho ou fazendo bico, vai ficar agressivo, talvez comece a beber e não pare…

a mãe vai batalhar numa empresa de limpeza, oito horas todo dia, mais três de ônibus, só vai chegar de noitinha…

a escola não vai ser muito boa, pra falar a verdade, tudo indica que a educação será péssima…

até aí, são apenas os fatos de uma sociedade muito desigual,
mas, quem é que vai dizer a eles que muito pouca coisa vai mudar ao longo da vida?

e que vão ter que circular pelas ruas vendo gente esbanjar dinheiro em carrões e caminhonetes sem praticamente nenhuma esperança de reversão?

e que, na televisão, apenas os ricos e seus valores serão celebrados?
e que, seus filhos, serão as vítimas de um amanhã incerto em tudo, menos na promessa de desigualdade?

e que até mesmo os discursos de transformação pedirão paciência de algumas décadas e respeito aos contratos –

“e nós assinamos algum contrato para sermos miseráveis?”

não tem outra saída: se a emancipação não for gradativa acaba em alguma espécie de golpe de direita (o militar caiu de moda, mas tem o midiático e o jurídico como opções pós-modernas)

mas isso não é justamente parte do problema — a aparente falta de alternativas ao lucro? e o aumento exponencial da avidez…

será que essa gradatividade é tão inevitável assim? lembra de quando a gente falava em queimar etapas?

e, se for assim, como é que a sociedade vai conseguir mantê-los quietos e conformados achando que a vida é isso mesmo?

tem que ser uma prática extremamente eficaz de repressão tripla: do bom senso, da auto-estima e da coragem pra reagir – de uma vez só;
para aceitar viver assim e não morrer de raiva com as injustiças, tem que acreditar que é inferior mesmo;

ou então engolir algum dos discursos manhosos de que as coisas vão mudar, já estão começando… 

e a coragem para reagir tem que ser transformada no espírito de ‘levar vantagem’, na aceitação tácita de que corruptos cobrem 300.000 reais por atos de governo;

e as máquinas de reprodução de discurso, seja religioso ou político, se encarregarão de convencer até a folhagem da floresta amazônica;
peraí não falsifique tudo, não é apenas discurso é política de financiamento e inclusão de consumidores de baixa renda…

mas com gradatividade: e aí, se essa repressão falhar, mesmo que por algum tempo, milhares, milhões, vão perceber que a coisa toda é artificial e forçada;

e vão imaginar alguma forma de reagir a essa violência cotidiana sem propósito e justificativa;

surgirão novos líderes num piscar de olhos;

não as formas de violência da nossa guerra urbana, uma espécie de suicídio social;

outro tipo de coisa: uma violência proativa e transformadora de quem não aceita mais o cabresto da realidade, de quem sabe seu destino…

os moradores de rua se transformarão em ativistas;

de quem tem certeza de que Deus não seria Deus se compartilhasse dessa farsa;

a violência pacificadora da exigência de oportunidades e dignidade para todos já;

e mais não saberia dizer — seria uma situação nunca dantes na história desse país.”

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