O papel dos amigos na vida de um homem

Cena do filme Nós que nos amávamos tanto
Fabio Hernandez, DCM

"Éramos quatro amigos no carro. E vínhamos pela estrada, voltando à cidade. Fazia tempo que não nos reuníamos os quatro. Uma das coisas tristes da vida é que, com a passagem do tempo, vai ficando cada vez mais difícil juntar os amigos. E não existe ninguém com quem compartilhemos mais coisas, a quem abramos mais os desvãos da alma do que com os amigos. A intimidade, a cumplicidade, a solidariedade masculina é representada pelos amigos. Ali estávamos nós quatro, naquele carro que se movia maciamente pela estrada. Quem dirigia era Fast Fat, ou Sérgio. Fast Fat era como o chamávamos nos dias em que éramos viciados em correr de kart.

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Fast Fat era o mais duro obstáculo aos pilotos como eu. Ele podia estar uma volta atrás. Ou até duas. No entanto, disputava cada curva como se estivesse prestes a ganhar uma corrida de Fórmula 1. Punha o carro de um lado, de outro, impedia a passagem de todas as formas possíveis. E era simplesmente indiferente às bandeiras azuis que fiscais impotentes abanavam em sua direção.
(Bandeira azul é para retardatários como Fast Fat deixarem passar). Quanta gente foi posta para fora da pista pelo contorcionismo de FF ao volante de karts frágeis demais para andar na frente diante do peso do piloto obstinado. Tenho minhas histórias de vítima para contar, mas fica para outra ocasião. Digo apenas que ri muito no dia em que FF, ou por defeito dele ou do freio, sabe-se lá, capotou espetacularmente. Tomou um susto, reclamou um pouco, deram-lhe um copo de água com açúcar e tudo bem. Uma capotagem justa, merecida.
 
No carro que voltava à cidade estava também Nelsinho. Gordo, ansioso, solidário, imperturbável perante as queixas que fazíamos quanto ao cheiro do cachimbo sempre atado a sua boca. Gente boa. Nelsinho tem aquela dose de ingenuidade ideal para quem gosta de pregar peças. Paramos num restaurante.

Cada um comeu seu sanduíche. Nelsinho comeu dois e mais uma coxinha avantajada. Saímos primeiro. Ele ficou para pegar um enorme pão de semolina. Um de nós sugeriu: “Vamos pedir a ele para dividir o pão com a gente”. Só para brincar. Nelsinho, diante do pedido, agarrou-se ao pão firmemente enquanto dava desculpas inconvincentes para não dividi-lo. Sabíamos exatamente o que ele ia fazer. E, quando fez o que sabíamos que ia fazer, defender bravamente seu pão, rimos muito, como só velhos amigos riem.

O quarto integrante daquele carro era o Zé. Tão ansioso quanto Nelsinho. E com uma imensa capacidade de rir de si próprio. A auto-ironia típica dos judeus. Zé vinha de um romance tumultuado, neurótico. “Começou com conta conjunta e terminou em baioneta”, dizia ele. Zé contava que, nos tempos da conta conjunta, via sempre seu saldo deslizar impiedosamente para baixo. Perguntava à mulher o que tinha acontecido. “Nada”, ela sempre respondia. “Não fiz nada de diferente”. Gastar mais do que o necessário talvez não seja mesmo nada de diferente para a maioria das mulheres (ia dizer todas, mas me refreei a tempo).

 Ríamos das lembranças romanticamente neuróticas do amigo Zé. Ele ainda mais que nós. Quantos casais não começam na conta conjunta e terminam na baioneta? Nada de novo sob o sol.

Quase chegando, Fast Fat disse que aquela nossa viagem parecia um grande filme. Nós que nos amávamos tanto. Sim, era verdade. Como no filme, voltávamos do enterro de um amigo. O tímido, brilhante, mas mentalmente instável Guilherme. Morrera em circunstâncias confusas. Uns falavam em ataque cardíaco. Outros em suicídio. Agora me passa pela cabeça seu último telefonema, em que ele talvez estivesse pedindo socorro, e eu não percebi. Na viagem lembramos histórias divertidas de Guilherme. E rimos muito, nós que nos amávamos tanto.

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