Fomos proibidos de te amar, São Paulo

O recém-inaugurado Mirante 9 de Julho, atrás do Masp, na avenida Paulista
"São Paulo é uma cidade no futuro: pós-apocalíptica, radioativa, seca, onde um dia dinheiro e trabalho não serão os únicos imperativos da vida social 

Facundo Guerra, CartaCapital

Herdamos o mito dos bandeirantes, e vocês transformaram Borba Gato, esse genocida, em fundador de nossa identidade. De legado temos esta metástase em forma de desenvolvimentismo estéril, estas milhões de toneladas de concreto que hoje tentamos adornar para deixá-las suportáveis, mas que seria melhor não existissem.

Nos confinaram em bolhas de metal, em bolhas de concreto, em bolhas de vidro, como se fôssemos gado que tem por ração plástico. Disseram na nossa cara que praia de paulistano é shopping, que Cumbica é o melhor lugar de nossa cidade, que plano de aposentadoria é pousada na Bahia. Que aqui não se cria filho, que essa terra só serve para ganhar dinheiro, como uma versão apocalíptica de Serra Pelada.

Nos deram uma ponte hedionda como novo cartão postal, transformaram nossa espinha dorsal em uma avenida de banqueiros, bairros inteiros em cidades-dormitório. Nos chamaram de feios, sem horizonte, sem perspectiva além da fuga. Que aqui não tem amor. Envenenaram nosso ar, nossa água, e até ela nos usurparam.

Por identidade nos deram os bairros, que ainda assim se digladiam entre si, o excesso de trabalho e um superpoder: a capacidade de deixar o outro invisível, praticada todos os dias com pessoas e lugares, nos semáforos, quando nos deparamos com o dependente químico que chamamos de zumbi, metáfora usada em tom cruel e irônico para dar nome ao nosso maior monstro social, justamente porque eles não produzem como nós, os viventes.

Nossa história e arquitetura foram deixadas às ruínas, que ativamente permitimos que desmoronem. Nos legaram um palimpsesto de cidade, onde sobrepomos uma camada de concreto à outra, sem respeito pelo passado, planejamento ou cuidado.
 
A estátua do Borba Gato, em Santo Amaro
 Nos disseram que devemos conquistar ou ser conquistados, non ducor duco, fomos colocados em estado permanente de guerra uns contra os outros, nos envenenaram com o medo pelas ruas e deixaram que o único elemento que nos cimentasse fosse o ódio comum e ancestral por São Paulo. Sem história, sem horizonte, perdidos.

Fomos proibidos de te amar, São Paulo.

Chega. Talvez essa relação atávica de ódio nos encha os olhos de cataratas e não consigamos dar nome a essa emergência ainda, mas o faremos, com o devido distanciamento histórico. Ocupamos as ruas com comida, com música, com arte, com cinema, com vida em toda a sua potência. Vimos no feio o belo, deixamos de ter medo da rua, que surge como um eixo que começa a aglutinar em torno de si uma nova identidade de paulistano. Lutamos com mil unhas e dentes por um pedaço de terra que até então não era mais do que um estacionamento e que chamaremos de parque. Fizemos da cicatriz causada pelo militarismo um espaço para ensinar os novos paulistanos a andarem de bicicleta. Ocupamos lugares que nunca tínhamos visto e recuperamos a avenida das mãos dos banqueiros. Faremos turismo na cidade que habitamos. Não aceitamos mais esse ódio, esse estado permanente de guerra, a necessidade de conquistar o outro diariamente.

Ponte estaiada Octavio Frias de Oliveira, na Marginal Pinheiros
 São Paulo é uma cidade no futuro: pós-apocalíptica, radioativa, seca, onde um dia dinheiro e trabalho não serão os únicos imperativos da vida social. Quando o mundo tremer, todas as cidades serão parecidas com a nossa. Do caos e da feiúra emergem uma beleza que apenas nós, que rejeitamos sua ideia de belo, vemos.

Temos vontade de rua, negamos seus heróis, seus monumentos, seus carros, seus modos de vida. Nem que nos custe décadas, mas faremos algo belo com os escombros que herdamos e deles faremos uma cidade, não uma abstração chamada São Paulo. Ocuparemos cada fresta, cada trinca, cada buraco da cidade cinza. Aqui se encerra esse ciclo de ódio e se abre uma possibilidade de um novo começo na relação com São Paulo.

Nossa terra está em transe. Somos afortunados. Somos os novos paulistanos, e essa cidade é nosso rolê."

Facundo Guerra é sócio do Grupo Vegas, com sete casas em São Paulo, entre elas o recém-inaugurado Mirante 9 de Julho.

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