A divina mecânica

“Imagine alguém que durante um semestre do ano letivo repete um ritual duas vezes por semana, fala durante sessenta minutos a um auditório desprovido de corpo, um auditório vazio. Esse alguém existiu, foi Isaac Newton (1624-1727). O ritual por ele praticado ocorreu no início de sua carreira como docente em Cambridge, por volta do ano de 1669. A partir desse fato, pode ser construída uma imagem comovente e bastante representativa da solidão humana. Essa imagem consegue transmitir àquele que venha a representá-la dolorosa angústia, já que golpeia fundo em algo que, cada um de nós, procura a todo custo negar: o sentimento de estar sozinho no mundo. Na ânsia em negar este sentimento, construímos elaborados e sofisticados pensamentos. Mas, no fim, permanece a inutilidade da energia gasta no exercício dessa negação. O mesmo esforço inútil ocorre quando procuramos uma explicação racional que, não só envolva, como explique, todos os acontecimentos do existir humano. Entretanto, inexiste essa teoria unívoca e, sim, várias hipóteses em confronto na arena construída pela história.

Newton, do alto da cátedra, sob a luz difusa a recortar seu perfil de ave de rapina, faz-se presente, tanto nos meus devaneios, como nos meus pesadelos. Nesses momentos, a representação dessa imagem possui grande força expressiva; sua contundência iguala-se à do fio de uma navalha que, usada como arma, consegue fazer a vítima da degola emitir um gemido pungente e inútil. A imagem de Newton, do alto da cátedra, é a negação das imagens sacras, já que não consola, não gera medo e menos ainda esperança. Demonstrar a existência de leis matemáticas que regem o universo para um auditório sem corpo é sinal de perseverança, obstinação e a existência de um caráter obsessivo que leva ao temor o possível opositor.

A réstia de luz demarcando o auditório, sua voz reverberando nas paredes criam um cenário de encantamento, atuando sobre Newton de maneira oposta à sua grande descoberta, a lei da gravidade. O estado de deleite mágico o conduz até as estrelas, possibilitando-o contemplar o universo; o fulgurante corpo do Criador viabilizado matematicamente. Do ponto de vista estritamente pessoal, esse Criador funciona como catalisador da ansiedade de Newton em busca da infinitude e, ao mesmo tempo, atribui sentido à sua solidão.”
Fernando Rego (In memoriam), Terra Magazine / Retrato: Isaac Newton de Godfrey Kneller (1689)
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