Borges - o tempo e o espaço da memória

Fernando Rego (In memoriam), Terra Magazine

"A subversão do cotidiano é tema caro à literatura borgeana. Para tal, transforma a memória e a imaginação nas fontes principais de seu processo criativo. Em 1976, Cioran escreve a Fernando Sarater dizendo que Borges é desenraizado. Um cidadão do mundo. No entanto, lamenta o excesso de reconhecimento universitário obtido pelo escritor argentino. Ocorrência deplorável, diz Cioran.

Pontuando e lastreando o fazer literário de Borges, destaca-se o idealismo subjetivista de Berkeley (1684-1753) e a psicologia empirista formulada a partir de David Hume (1711-1776). Do primeiro, Borges faz uso das representações como realidade, enquanto, do segundo, apropria-se da associação das ocorrências para a formação das representações.

O modelo literário exemplar é o da literatura de aventura: antípoda, portanto, ao da psicologia intimista, à maneira de Proust. Isto é dito pelo escritor em famoso prólogo - ao livro de Bioy Casares, A invenção de Morel, datado de 1940: "A novela de aventura não pretende ser uma transcrição da realidade: é um objeto artificial, que não sofre nenhuma parte injustificada". A novela psicológica sofre de excesso de artifício verbal, uma "lânguida imprecisão" que pretende ser o retrato da realidade. A escrita literária perfeita é marcada, não pelo tema abordado, e sim ao adquirir invulnerabilidade ao tratamento retórico.

Walt Whitman (1819-1892) toma a si mesmo como núcleo de sua poética. Borges o imita, constrói uma certa representação que, com o decorrer do tempo, irá ocupar o lugar de seu criador: "Assim, minha vida é uma fuga e tudo perco e tudo pertence ao esquecimento, ou ao outro. Não sei qual dos dois escreve esta página" (El Hacedor). Sorrindo, Borges reparte, democraticamente, o esquecimento entre os homens, mas reserva a imortalidade àqueles que permanecem na memória do outro, aos eleitos. O artista, através da criação, iguala-se aos deuses.

A doutrina fatalista assombra e aterroriza, dado que o existir pressupõe uma escritura prévia. Dotá-la de certa candura, forma lânguida do poder, é uma das características marcantes na obra borgeana. Assim, cada indivíduo é parte da criptografia chamada, vulgarmente, de História Universal. Esta estranha escrita compõe um texto no qual somos a letra. A eternidade arquetípica é escritura indecifrável: chave que dá acesso a todos os labirintos possíveis.

O leitor é também autor do texto. Assim, cada leitor de Borges é, no momento da leitura, Borges. Como tal, sentirá a infinitude espacial como um dom dos cegos e imaginará, através da concepção cíclica da história, a possibilidade de construir um livro infinito, cuja última página é idêntica à primeira e, assim, indefinidamente. Jogo de metamorfose, onde a multiplicidade das ocorrências termina por criar uma duplicidade que irá complementá-la. Cada ser possui seu similar e este poderá ser responsável pela explicação de sua existência. Deste modo, o poeta nascido em 1889, na Rua Tucumán, em Buenos Aires, é o mesmo que, na temporalmente longínqua Grécia, cantou as aventuras de Ulisses, aquele cujo nome significa ninguém; e foi ainda um certo inglês, que tinha por hábito, em virtude da cegueira, ditar versos às suas visitas para que estas as copiassem, já que os trazia armazenado na memória durante dias. Este inglês chamava-se Milton (1608-1674), autor do Paraíso Perdido.”
Foto: Reprodução
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