Driblar, tocar e pensar

Antropólogo explica como o movimento Democracia Corinthiana refletiu e colaborou na construção de uma corrente de pensamento popular de uma época

Eduardo Sales de Lima, Brasil de Fato

Em 1964, o então presidente do Corinthians, Wadih Helu, celebrava, em reunião do Conselho Deliberativo, “um voto de júbilo” pela “desassombrada e patriótica tomada de posição de nossas Forças Armadas”. A partir dessa data, José Paulo Florenzano, autor do livro recém-lançado “A Democracia Corinthiana – práticas de liberdade no futebol brasileiro”, percorre a história da sociedade brasileira tendo o futebol como o espelho de experiências libertárias e democráticas no país, e, talvez mais que isso, abordando-o como o centro da cultura nacional.

Florenzano é antropólogo e... palmeirense. Tal condição, segundo ele, auxiliou-o em relação ao “distanciamento crítico” do objeto de estudo. Uma das ideias principais da obra é retratar que a luta pela liberdade dos jogadores dentro da ditadura civil-militar “difundia-se por entre os coletivos de atletas e se interligava e nutria com os embates travados nas fábricas, nos sindicatos, nas igrejas, nas favelas, enfim, nas diversas esferas da vida social”, diz trecho do livro.

Vem, então, a Democracia Corinthiana (1981-1985), que aprofunda experiências de autogestão entre os jogadores, como a ocorrida no seio da seleção brasileira tricampeã de 1970. Os atletas passam a governar a equipe, e a resolução de questões comuns do clube, como a escolha do técnico, da estratégia de jogo do time, da contratação e da dispensa dos integrantes do elenco, das normas disciplinares, e até o engajamento nas questões sociais do país era colocada na mesa, quer dizer, em campo. Em seu livro, o antropólogo aponta possíveis pistas para a influência dessa nova forma de organização entre os boleiros, como “os comitês de fábrica na Rússia, em 1917, os conselhos operários da Hungria, em 1956, ou mesmo a recusa libertária de qualquer forma de autoridade inspirada a partir de maio de 1968”.

Os jogadores de futebol decidiram lutar para redefinir “as possibilidades de ser atleta”, abrindo caminho para conexões com movimentos sociais, culturais e políticos. Abaixo, um bate-bola com Florenzano:

Brasil de Fato – Por que um palmeirense garimpa a história política do país por meio de um movimento surgido no Corinthians?
José Paulo Florenzano - Comecei com uma pesquisa inicial de mestrado que tratava da rebeldia no futebol brasileiro, sobretudo centrada na luta do Afonsinho pelo passe livre [através do qual o atleta tem o direito sobre sua própria “força de trabalho”, e não o clube ou empresário], entre outras coisas, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Daí, por sugestão da antropóloga Márcia Regina da Costa, surgiu a experiência da Democracia Corinthiana, um desdobramento lógico daquela pesquisa inicial que se mostrava como uma alternativa ao modelo hegemônico no futebol brasileiro. Eu sou um torcedor do Palmeiras que, de repente, por circunstâncias da vida acadêmica, me vi diante de um objeto de estudo que se identificava com o arqui-adversário. Acho que acabou sendo um bom encontro, porque me deu um distanciamento crítico ainda maior.

Qual foi o peso dessa ruptura provocada por jogadores como Sócrates, Zenon , Casagrande e Wladimir, entre outros, dentro da sociedade brasileira naquela época?
A Democracia Corinthiana se constitui num movimento que incomoda, perturba, não só o regime militar, mas de um modo geral, o pensamento conservador do país. Isso foi celebrado como uma mudança de postura do atleta brasileiro; o engajamento dos jogadores do Corinthians no movimento das “Diretas Já”. Convém assinalar que, na verdade, esse engajamento antecede o movimento da Democracia Corinthiana e, se você quiser encontrar um marco nesse processo, para não recuar tanto no tempo e resgatar o Afonsinho, temos a entrevista do José Reinaldo de Lima, o Reinaldo, ex-centroavante do Atlético Mineiro, ao jornal de oposição ao regime civil-militar, “O Movimento”. Aí, o Reinaldo já reivindicava a convocação de uma Assembleia Constituinte, a eleição direta para Presidente da República, enfim, uma série de conquistas democráticas.

Isso foi em que ano?
Em 1978.”
Entrevista Completa, ::Aqui::

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