O que as palavras criam

Valdivino Braz, Revista Bula

“Aquele estranho que falava em cima da rocha, inconho, de dedos duplos, à hora do crepúsculo. No cocho refocilava o porco. Os cães ladravam por ali à solta. Língua que se bifurca, movia-se o ser rastejante e sinuoso; o dorso liso e luzidio, em meio aos matizes dourados, grises e sanguiferruginosos das folhas de outono. Como um gatuno, o vento ia do sussurro ao murmúrio, até que, repentino, uivava e gania, feito lobo. O que nos adocica ou azeda é o que nos sai da mente e do coração e vem pela boca. Da fala à premeditação ou intempestividade dos gestos, e destes à consumação dos atos. O beijo ou o homicídio, por exemplo.

O que nos afaga ou espanca depende da mão que se levanta. O que nos pisa e esmaga vem com o pé em forma de pedra. Assim falava o estranho coxo, como quem pisa em falso num sopro de flauta. Como se viesse com um corte de caco de vidro em pé descalço. Com um roufenho som gutural, as palavras sangravam em seus lábios. Assim falava o manco e rouco, que alguns tachavam de louco. E aquela roupa rota e longa que usava, era uma capa de seda negra ou eram mesmo asas de morcego? Seria um anjo caído? Um demônio?

Eis que então demudava o tom e o teor de sua fala. Todas as manhãs escovo meu sorriso de rosnar para o mundo. O sórdido mundo que abomino e me aborrece, porque meu reino é deste mundo a que pertenço. Assim falava, meio torto, como se sofresse de um torcicolo. Talvez por conta de só olhar o mundo de soslaio. O mundo visto pelo canto da vista, ou canto do olho, que é onde se diz que fica o rabo do olhar. Falava por enigmas. Olho como quem não olha no olho da Lua Negra. Os negros, íncubos olhos de Lilith. O mito arcaico. Aquele que na cópula queria Adão na condição de súcubo, e ele a isso não sucumbiu.

Olha-se ela nos olhos dele,
cegos para os olhos dela,
não se perder ali na escuridão.”
Crônica Completa, ::Aqui::

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