Putana e a cor do excremento

Valdivino Braz, Revista Bula

“Ali vai ela, pelos becos e vielas periféricos, insalubre labirinto, se lembrando de quando ainda era menina e não imaginava o que seria quando crescesse, nem sabia, a fundo, das maldades do mundo. Nem de longe supunha o que a vida lhe reservava, que tivesse no corpo, como agora, as marcas das taras, da luxúria e da violência, e sofresse na alma a dor de tudo isso. Era só uma menina, púbis impúbere, ocasião em que libidinoso padre levou-a até a sacristia e ali se trancou com ela, dizendo que ela era uma menina abençoada porque tinha um bom anjo da guarda. As coisas que ele fez, então, nem lhe conto. Mas foi tudo na base da oralidade e digital, além do olfato. Cheirou-a toda, o “santo padre”, como o chamava a beata Vesgolina, que o bajulava a troco de secretas indulgências, segundo as más línguas. Do que ele fez, pediu segredo à menina, sob pena de castigos infernais; a infância tomada pelo medo. A coisa de verdade, mesmo, só aconteceu mais tarde, já ela de peitos empinados e empenujada, como se diz; a almofada lá embaixo com uns encaracolados símiles a palha de aço. E desta vez não foi só com a boca e os dedos. Foi com tudo. Na casa de um juiz de menores, onde ela trabalhava como empregada doméstica e o filho mais moço do magistrado a envolveu na conversa — “minha doce empregadinha doméstica”, a melosa lábia do lobo — e aí aconteceu. Hoje, na vida que leva, tem vezes em que se sente um lixo, censurando-se por se submeter — imperativa demanda da sobrevivência —, aos ditames da prostituição. A vida toca muitas demandas, minha filha; obriga a gente a seguir em frente e fazer coisas que, muita vezes, não são do nosso querer, como diz a cartomanete Dona Alzira. Por imposição da vida, ali vai ela, que se chama Beladona. Se isso é nome que se dá a alguém, como os pais lhe deram, pensa ela. Beladona é nome de planta que, no que tem de medicinal, diurético, é também venenosa, é tóxica. Por isso, ela inventa que seu nome é Ana, e por causa da vida que leva, não lhe faltam epítetos ou apelidos, como não lhe faltam peitos fartos. Ana Peituda, por exemplo. E há sempre quem lhe aplique pejorativo adesivo, deles havendo que a ofendem e machucam por dentro. Ana Putana é um deles, e foi o que mais pegou, como um nome-de-guerra, uma estrela na testa, um estigma. Mas, vai indo, vai ela se assumindo com o seu nome de puta. Por força da rima e do que lhe vem por cima. E ali vai ela, seguindo o cotidiano, diuturno itinerário de humanas misérias, até o centro nevrálgico da urbe, até o útero, até o cancro da metrópole, até o inferno. Olha lá, a Beladama, anuncia, meio que mangando dela, alguém que a conheça e lhe saiba do nome verdadeiro e do ofício. São donas de mangações, principalmente, certas mulheres com alguma ponta de inveja dos brincos e trajes que ela usa; de resto, nada chique, nada de jóias verdadeiras, mas singelas roupas novas e bijuterias que a deixam mais apresentável, além do perfume que é pra ficar mais cheirosa. Por causa do nome e da função, acresce-lhe, por vezes, um gaiato “Peladona”. Na verdade, Beladona é prenome, porque o nome é o Barbosa de sua mãe, vindo-lhe por sobrenome o Santos do pai. Pai e mãe morreram contaminados pela podridão de enlatados encontrados nos lixões, de onde tiravam o sustento de uma desgraçada sobrevivência. Beladona Barbosa dos Santos, filha da miséria. Ao seu dispor. Lavagem para os porcos, imagina-se ela, em momentos de baixa estima. Dama da noite, sofrida flor da vida, ali se levando como o boi que se leva ao abatedouro do frigorífico. Claro que mal se compara, pois o destino do coitado do boi é diferente do caso dela, porque trágico, mas é com um sentimento assim que ela se entrega a todo tipo de sacrifício, mesmo os nojentos. Cospe o asco que sente da vida. De um modo ou de outro, boi e prostituta estão condenados a morrer. Aliás, tudo que é vivo. Se bem que, também não vai mentir, por vezes o michê a compense de modo prazeroso. E assim vai levando. Vai com ela, feito lhe fosse uma sombra por companhia, um contopoema de pernas diligentes, escorreito em linhas corridas, que aqui se inicia. Uma sátira? Um mamífero alado? Hematófago? Frutífago? Contundente e deprê. Com estes olhos que a terra há de comer. Olhos que a tudo assistem e denunciam. Do pretérito para o presente, vice-versa frente e verso, consoante os reversos de Beladona, de cognome Ana, de aposto Putana, seu código e seu decalque, por força do que se lhe antepõe, pospõe e sobrepõe. Ossos do ofício, via crucis de orifícios, as coisas perversas que lhe acontecem. Por ali, por aí, por aqui, chupando drops de anis — canta aí, Rita Lee —, balas de ananaz ou balas perdidas. Doidos marimbondos de chumbo e fogo, das favelas aos bairros nobres da República de Pindamonhangaba, terra de contrastes e contradições, de barracos e mansões, pois este ainda é um país de casas-grandes, castelos ilícitos, mansões e senzala social. Corram, que lá vem bala. Quem não corre se dá mal, leva tinta e leva sal. Corram dos bandidos. Corram, que a polícia vem aí. Corram dos tiras e dos tiros dos poderes paralelos. Corram da cumplicidade, da conveniência e do cinismo de “podres poderes” constituídos.”
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