Davi, de Michelangelo: o corpo como Ideia

Jardel Dias Cavalcanti, Digestivo Cultural

“Havia em Florença um gigantesco bloco de mármore que havia sido esboçado por Agostino de Duccio, mas que foi abandonado antes de se transformar em escultura. Dois artistas disputavam a honra de esculpir o bloco para transformá-lo em uma obra de arte: Leonardo da Vinci e Andrea Sansovino. Mas seria Michelangelo quem ficaria responsável pela tarefa, devido à sua já consagrada fama de genial escultor por causa de seu Baco e de sua Pietà (esculpida aos vinte e três anos).

Michelangelo esculpiu Davi nesta enorme rocha de mármore, entre os anos de 1501-1504, como uma das mais belas representações do corpo humano. A escultura, um colossal adolescente de mais de quatro metros e meio de altura, foi colocado no centro da cidade de Florença para admiração pública. A nudez do Davi acabou despertando a ira pudica dos Florentinos que várias vezes o apedrejaram. Aretino, que criticou a indecência e as liberdades anticlássicas do Juízo Final, pediu ao artista, em 1545, que cobrisse com folhas de parra em ouro as partes vergonhosas do seu belo colosso.

Se para os outros era uma imagem pagã, para Michelangelo tratava-se da mais perfeita forma criada por Deus: o corpo masculino. Como anotou Romain Rolland, "para este criador de formas admiráveis, que era simultaneamente um piedoso crente, um belo corpo era algo de divino ― um belo corpo era o próprio Deus surgindo sob o véu da carne".

Essa Ideia de que é no corpo humano que a beleza divina melhor se manifesta é comprovada nos versos que Michelangelo dedicou a seu amante Cavaliere, quando diz que: "em nenhum lugar Deus se mostra mais a mim em sua graça do que em alguma bela forma humana; e só isso amo, pois nisso Ele se espelha".

Mais do que a simples representação de um adorável corpo adolescente nu, a obra de Michelangelo trazia para dentro de si as proposições máximas da estética e da filosofia do Renascimento. Superando o imperativo da Antiguidade da "semelhança com a natureza", contida na ideia de imitação, o que se pode ver é outra concepção, a de um triunfo da arte sobre a natureza, que se realiza graças à imaginação e à inteligência do artista que pode recriar a beleza absoluta que se acha incompleta no mundo natural, mas que está guardada perfeita na sua alma.

Para o Renascimento o grande escultor seria aquele que pela habilidade técnica produzisse o simulacro, a ilusão de que a vida habitava o mármore. A antiguidade clássica, que inspirava os renascentistas, baseava-se nessa proposição, e Virgilio,a eneida, alude tipicamente a "bronzes que respiram suavemente e rostos vivos feitos de mármore".

Concepção essa típica também dos tratados artísticos da época de Michelangelo, como em Dürer: "E entende-se que um homem trabalhou bem quando consegue copiar com precisão uma figura de acordo com a vida, de modo que o seu desenho se assemelhe à figura e se pareça com a natureza. Sobretudo se a coisa for bela, a cópia será considerada artística e fará jus aos mais altos louvores".

Leonardo da Vinci e Leon Battista Alberti eram de parecer de que a representação perfeita dos sinais físicos da emoção e dos estados de espírito constituíam a tarefa máxima e mais difícil para o artista, pois, como registrou Leonardo, a figura mais admirável é aquela que por suas ações melhor exprime o espírito que a anima. O objetivo, então, era expressar as operações do espírito através da forma, sendo a arte o melhor lugar de sua tradução.”
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