Sete pecados geniais

Ademir Luiz, Revista Bula

“O Pecado Genial serve para proteger os interesses e o espírito livre do pecador. Não é específico, como não matar ou não roubar. Muda segundo a estação e a necessidade. E mesmo o número de sete é maleável, serve apenas como licença poética e referência cabalista

...O Homo Sapiens é o único animal que sente culpa. Grande parte de seus esforços evolutivos foram gastos na arte de criar, hierarquizar e desenvolver motivos para se sentir culpado. Via de regra o agente causador da culpa é o pecado. Sejam mortais, veniais ou capitais. Cada qual com sua especifica carga religiosa, sexual ou ética. E seu devido peso nos diversos tribunais pós-morte. Estes pecados podem ser frutos de tentação, curiosidade ou impulsão, não importa; a questão é que produzem culpa e culpados. E desta combinação se pensa extrair a ética.

Acho, porém, que o fator negativo de um pecado depende muito do ponto de vista pelo qual é encarado. Os pecados de Pandora, Prometeu, Adão e família, Judas Escariotes e mesmo de Lúcifer, foram, em um sentido metafísico, partes de planos maiores. Do mesmo modo, sempre procurei imaginar quais pecados foram cometidos pelas figuras colocadas no limbo por Dante. Com certeza pecados dignos dos homens brilhantes que foram. Geniais pecados, pensei. Principalmente porque preservaram suas consciências.

Acredito que pecar é um direito do ser humano. Manipular o pecado é um direito do ser humano bem pensante. Por isso criei o que chamei de os Sete Pecados Geniais, como forma de defender-me contra a lógica pobre da culpa. Faço o errado se tornar correto, apoiado em três simples motivos: acredito, desejo e mereço. O Pecado Genial serve para proteger os interesses e o espírito livre do pecador. Não é específico, como não matar ou não roubar. Muda segundo a estação e a necessidade. E mesmo o número de sete é maleável, serve apenas como licença poética e referência cabalista.

O Primeiro Pecado Genial surgiu de uma moeda, inspirado em uma das mais antigas e infalíveis trapaças já criadas. E é dono de uma estória. Quando de minha chegada na Universidade passei a dividir meu quarto com um animal ruivo e alienado que, estranhamente, cursava Letras Latinas. Chamava-o de Kafka devido a seu aspecto geral lembrar o de um inseto daninho. Resignado, convivi com ele por um ano, acreditando na máxima biológica de que o homem pode adaptar-se a tudo. Isto não aconteceu. Passado os primeiros meses continuou sendo uma tortura ouvir sua voz rouca e fanhosa repetindo diariamente que seu maior sonho era terminar a leitura do “El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha”, no espanhol arcaico original. Fechar com estrondo a última página do último volume e bradar que, enfim, era uma criatura completa, já tendo um filho concebido, uma árvore plantada e um caderno de sonetos escrito, na adolescência. Poderia morrer como um homem completo. Pois, afirmava Kafka, pressentia que morreria tão logo completasse a fatídica, porém, estimulante missão de ler o estupendo calhamaço de Cervantes. Mal poderia ele imaginar o quanto eu torcia para que sua profecia se cumprisse. Não se passava um dia sem que eu lhe perguntasse em qual capítulo estava. Mas, para meu desespero, o inseto lia de modo tão lento e desastrado que julguei ser ele o único ser vivo na natureza a possuir tempo de vida cumulativo e não retroativo.

Posso garantir que o que aqui afirmo não consistia em simples destempero de minha parte. Kafka cultivava o hábito de esquecer-se de minha existência. Costumava trancar a porta do alojamento e desaparecer, com a única chave disponível, invariavelmente deixando-me trancado. Do lado de dentro ou do lado de fora. Horas depois retornava, pedindo desculpas, exibindo um ar grotescamente ingênuo. E havia mais: Kafka cuspia no chão. Kafka sofria de sonambulismo. Kafka comia porcamente. Kafka colecionava lixo e, finalmente, Kafka e suas roupas cheiravam naftalina.

Problemas burocráticos e de espaço físico no Parthenon impediram minha troca de dormitório. Passei então a tramar um modo caseiro de extermínio. Descartada a possibilidade de homicídio, restou-me a opção da fraude. Felizmente, o indesejável cobiçava dois objetos de minha posse: um belo relógio de corrente trabalhado em ouro e uma centenária ampulheta árabe de bronze. O primeiro sem engrenagens e o segundo sem areia, mas ambos dotados de enorme valor simbólico. Costumavam ocupar lugares de honra no acervo do principal museu de meu burgo natal. Nada mais natural do que incluí-los no plano.

Alimentei a cobiça de Kafka até fazê-lo aceitar participar de um aparentemente ingênuo jogo de moeda, regado a álcool. Nas primeiras jogadas perdi meus dois objetos. Sentido-se com sorte, e já devidamente bêbado, Kafka aceitou apostar sua vaga no quarto contra a posse de minha alma. Para evitar dúvidas fiz com que ele próprio jogasse, não sem certa dificuldade motora, a moeda escolhida, aparentemente ao acaso, dentre várias, para resolver a disputa. Escolhi coroa, caiu coroa. Não houve discussão, o infeliz não poderia negar o que fez com as próprias mãos.

Naquela noite dormi vingado. Sonhei com um inseto sendo esmagado por uma gigantesca moeda de face dupla. Ambas coroa. Portanto, deste modo nasceu o conceito do Primeiro Pecado Genial: não hesite em subestimar, se você tem certeza da tolice de seu adversário.

A partir deste dia Kafka tornou-se uma figura folclórica no campus. Era o ruivo que dormia nos bancos, na grama ou sob os carros estacionados. Contudo, mais de uma vez foi obrigado a expulsar de minha propriedade Kafka e sua amante, uma acadêmica de matemática baixa e franzina

Os outros pecados surgiram em uma seqüência natural.”
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