Com ventilador, mas sem educação

Marta Barcellos, Digestivo Cultural

“Era a economia, seria estupidez ignorar. Meu entusiasmo com o Brasil ― o país que insistia em marejar os olhos da gente na hora do hino nacional, embora jamais fosse acertar-se no mundo ― dessa vez tinha bases sólidas. Bastava olhar os indicadores sociais e econômicos. Mais que isso: bastava sair às ruas, no esplendoroso verão carioca, para confirmar o comércio fervilhando, todos ganhando um dinheirinho com algum trabalho e gastando no supermercado lotado. Na fila do táxi, em um shopping da Barra da Tijuca, pude observar duas famílias, da cor brasileira, aguardando a vez com caixas de ventiladores e um aparelho de ar-condicionado. A vez deles havia chegado. Mais um pouco, daria até para comprar um carrinho.

Esta era a nova e reluzente realidade, eu me comprazia. Superada a fome, conquistadas a estabilidade e a democracia, estávamos saindo daquele terrível estado em que viver é sobreviver. Poderíamos evoluir até para o estágio da arte ― e no quesito cultural imagina o que virá pela frente, pensei, se a riqueza existia mesmo antes, convivendo com a pobreza financeira. Que espetáculo de país seremos, já somos, e quase tive vergonha de parecer ingênua de tanto otimismo.

Em nenhum momento de meus devaneios, fique claro, ignorei o problema da educação. Ele estava lá, gigantesco, mas sua solução parecia próxima, como desdobramento natural do crescimento econômico e da vontade política. Bem ou mal, já tínhamos todas as nossas crianças na escola. Os investimentos inevitavelmente seriam canalizados para a área. Foi mais ou menos nessa época, de entusiasmo exacerbado, que recebi a notícia: M. provavelmente repetiria o ano na escola. Novamente. Fiquei atordoada e acabei sendo mais incisiva com a sua mãe, que trabalha como empregada em minha casa, do que me prometera ser em relação ao assunto. "Mas não tem jeito? Não existe recuperação ou segunda época na escola pública? As aulas de reforço não adiantaram?"

Sempre me senti responsável por M., uma menina muito falante e inteligente, hoje com 10 anos. Talvez pela forma como a conheci.

Depois de sete anos em São Paulo, um lugar onde descobri que esforço e mérito podem ser, sim, mais importantes que relacionamento e "berço", eu procurava um imóvel para comprar no Rio de Janeiro. Após algumas visitas, o corretor nos mostrou um apartamento especialmente encantador, ainda mobiliado, embora o dono tivesse se mudado há um ano para sua fazenda em Minas Gerais. Quando passamos pelas dependências de serviço, lá estava M., sentadinha e compenetrada, ao lado da tábua de passar roupa, esperando pacientemente pelas tranças que a mãe lhe fazia no cabelo.

A cena ficou registrada em meus pensamentos, provavelmente porque a menina aparentava ter a mesma idade de minha filha. Tudo fez mais sentido quando meu marido comentou, nos dias em que fechava a compra do apartamento, que o proprietário incluíra nas negociações um pedido inusitado: que contratássemos a sua empregada. Bastaram alguns dias no apartamento novo para eu ter dúvidas sobre qual tinha sido nosso melhor negócio: o imóvel ou a empregada, perfeita.”
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