Pés gelados

Luís Fernando Veríssimo, O Estadao de S.Paulo

"- Doutor, eu entro no chuveiro e lá está a calcinha da minha mulher pendurada numa torneira.

- Sim.

- O armário do banheiro está sempre cheio das coisas dela. Potes de creme, sprays, loções, bisnagas. Não tem lugar para as minhas coisas. Já tentei jogar tudo fora mas não adiantou. No dia seguinte o armário estava cheio das coisas dela, de novo.

- Sim.

- A coberta da cama está sempre presa no lado dela. Não consigo puxar para o meu lado.

- Sim.

- Não posso usar o telefone. Está sempre ocupado.

- Sim.

- E o pior, doutor. Os pés gelados dela encostando na minha perna, na cama. Quando eu menos espero.

- Sim, sim. Só não entendo por que o senhor está me contando tudo isso. Parece mais assunto para um conselheiro matrimonial, não um psicólogo.

- É que a minha mulher morreu há mais de um ano, doutor!
A águia voa na sexta. Os "blues" não costumam ter letras muito inspiradas. São sempre lamentos sobre amores desfeitos, mulheres infiéis e outras misérias da vida, ou sexo puro, sem poesia. Mas algumas letras escapam deste padrão simples. Num blues que começa assim "They call it bloody Monday, but Tuesday"s just as bad" ("chamam de segunda infernal, mas a terça-feira é igual", tradução aproximada da minha inteira responsabilidade), o cantor enumera o que faz na semana toda. E canta: "The eagle flies on Friday." "A águia voa na sexta." Um raro exemplo de linguagem críptica, ou refração poética, numa letra de "blues". A frase não significa que na sexta-feira o cara se solta, cai na noite, etc., porque no verso seguinte ele diz que nos sábados sai para se divertir. Significa o que, então? O que, na gente, se livra das convenções e da mesmice do resto das semanas e alça voo - mesmo que apenas teoricamente - nas sextas-feiras? De qualquer maneira, guarde esta justificativa, para o caso de algum dia ter que se explicar: sexta-feira é o dia da águia.”
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