Manual para o leitor de transporte público

Duanne Ribeiro, Digestivo Cultural

“O ônibus segue a dois centímetros/hora, mas a tensão do trânsito paulista não me engole e é feito Haroldo de Campos que escapo: "o livro me salva me alegra me alaga". Como, onde, quando é que você lê, leitor? Eu geralmente só leio no transporte público, nas duas ou três ou quatro horas (de acordo com o humor de São Paulo) em que passo indo de lá pra cá. Não chego a agradecer a deus por um congestionamento, como se diz de José Mindlin, mas ler me mantém sadio e eu não penso em comer os olhos de ninguém quando uma passeata para a Consolação e a Paulista fica imóvel do Paraíso à Bela Cintra. Não, não. Estou longe. Sou quase um monge budista, de vez em quando olhando os sem-livro incompreensíveis.

Porque o livro é viagem... e esta viagem vertical por ideias se repetindo ao longo da viagem horizontal dos cotidianos me deu método. Compôs-se assim quem sabe a primeira filosofia do bilhete único. A análise de superestrutura ignorada por Marx. Uma pragmática surgindo inequívoca das vias urbanas. Não passa o tempo quando parte do seu rosto está coberto pelo cabelo de alguém e você não consegue mover seus pés nem que seja só um pouco. Não passa o tempo quando uma única fila faz três voltas no ponto, ocupa também a escada do metrô e ainda assim o ônibus não chega. Mas uma Piauí na mão salva seu dia. Por outro lado, você pode ser o sujeito que fita o nada por horas a fio. Pode ser o cara tratando de política ― o Alckmin anda de helicóptero, a gente fica aqui! Ou você pode fazer o melhor possível dessa situação.

Quero dizer, nada de amadorismo. É possível ler de pé, se você segurar o livro com a mão semi-homem-aranha (polegar e mínimo nas páginas, mantendo-o aberto; indicador, anelar e dedo médio na contracapa, formando assim uma espécie de alicate). E é razoavelmente confortável se você consegue encostar as costas em um dos bancos altos, ao lado do banco individual ― o ônibus te impulsiona e fixa contra o encosto. Mas é claro que é melhor estar sentado. E, sim, você pode sentar no degrau que leva à última fileira de assentos ― porém terá que aguentar a quentura tremenda que sobe, sei lá, do motor, e que faz sentir o intestino assando em fogo baixo. Ou pode se acomodar nos degraus em frente às portas, mas vai logo notar que há uma atmosfera chulezenta espessa e insalubre por ali. O ideal é a cadeira, azul como a beatitude. E ao lado da janela, para que o mundo exista de vez em quando.”
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