Eberth Vêncio, Revista Bula
“Fazia frio. A chuva fina que caía
ininterruptamente há dois dias provocou queda na temperatura. A mudança brusca
das condições climáticas de uma cidade do centro-oeste brasileiro, acostumada
ao calor seco sempre tão nocivo à mucosa respiratória e ao capim, compromete o
humor das pessoas. Geralmente, para menos. Nunca se está plenamente satisfeito
com o que se tem, não é mesmo?!
Pois bem: ele morava com a família num
condomínio de luxo. Um apartamento por andar. Quisera ele tivesse também um
pensamento por vez dentro da cabeça. Não. O turbilhão de lembranças o deixava
zonzo e irritado.
A esposa saíra com os filhos pequenos.
Aniversário de criança. Preferiu ficar em casa tentando desopilar aquele mau
humor pegajoso. Gozava apenas da companhia do cachorro, uma criaturinha pela
qual não nutria tanto afeto assim. Aliás, há dois anos, fora voto vencido
quanto à sua entrada no apartamento. Sentia-se desamparado naquela noite
chuvosa. Frente fria é assim mesmo. Parece remorso. Pega a gente quando menos
se espera.
Garimpou na estante alguma música animada
que exorcizasse tantos demônios, mas acabou mesmo optando pela coletânea de
blues. Colocou bi-bi-quingue pra tocar. Embora não fumasse, desejou um cigarro.
O uísque escorria fácil pela garganta e era deglutido em goles apressados.
Naquela situação, convinha não adiar o entorpecimento.
Entretanto, os efeitos do álcool e da
chuva deixaram-no ainda mais melancólico, neurastênico, saudosista e
— convenhamos — deprimido. Episódios vividos na infância e na
adolescência invadiam, vividamente, a cabeça, provocando sentimentos
antagônicos que o deixaram bem agitado. Apesar do frescor da varanda, gotículas
de suor brotavam na sua fronte a desafiar lógicas meteorológicas. É lógico que
ele preferia bodar de vez e embotar tantas lembranças remotas.
Tomou, enfim, o telefone em suas mãos.
Ficou irritado por não se lembrar do número telefônico do irmão, com o qual não
falava há uns quinze anos. Briga debutante (quase riu ao pensar nisto).
Cambaleando, serpenteou pela sala em busca
da agenda, esbarrando, derrubando, espatifando enfeites frágeis e fúteis da
mobília. Tropeçou também no cachorro, aquela criatura inútil (foi assim que
esbravejou). Filho da puta! (ele disse, como se o outro fosse humano) Medroso,
o bicho foi deitar num canto da sala, com aquele olhar meio constrangido, meio
humano, focinho entre as patas, sabe como é?!”
Artigo Completo, ::Aqui::
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