Vicente Escudero, Digestivo Cultural
“Os passageiros examinavam com desinteresse
o cubículo, esperando que a viagem com aquele sujeito desconhecido acabasse
antes de descerem em seus andares. Nosso homem caminhou pelo corredor
empurrando o carrinho dos pintores, depois de sair da cabine do elevador, que
se fechou e sacudiu, partindo para o próximo andar. Entrou no escritório. Os
passageiros ainda viajavam, tentando controlar a imaginação com as preocupações
do dia. A solidão era dividida em partes iguais entre todos que trabalhavam
naquele prédio cravado no centro de Pyongyang; uma pessoa poderia passar um dia
inteiro em qualquer das salas sem perceber a chegada da noite. Os passageiros,
aos poucos, desembarcaram. Logo descobririam que a incômoda presença
repetiria-se uma última vez. Nosso homem caminhava entre os móveis do
escritório abrindo gavetas e caixas, desarrumando papeis, procurando o arquivo
com documentos contendo sua verdadeira identidade e de sua família, o conjunto
de dados do governo que lhe atribuíam o status de criminoso pela prática de
espionagem e traição na venda de informações para o governo da Coreia do Sul,
sobre o posicionamento militar do exército na Linha de Demarcação Militar.
Pernas e mãos movimentavam-se em todos os sentidos na tentativa de revelar
qualquer compartimento escondido da sala. A porta da entrada abriu-se. Deitado
sob uma das mesas da recepção, nosso homem assistiu um par feminino de pernas
caminhar lentamente e com cuidado pelos dois ambientes do escritório, evitando
pisar com os saltos nos papeis, desviando da mobília revirada e analisando cada
centímetro da desorganização. Sua atenção parecia inesgotável e preocuparia
nosso homem se ele não estivesse ocupado com a descoberta de um compartimento
secreto embaixo da superfície da mesa, onde encontrou o arquivo e um disco
rígido marcado com uma etiqueta contendo "Vigilância (abril de 2009 -
janeiro 2010)". As pernas femininas se flexionaram de repente, um par de
joelhos tocou o chão e o rosto de uma das recepcionistas do edifício revelou-se
com intenso terror. Nosso homem foi descoberto vasculhando a sala. A
funcionária, desesperada, arrastou-se no ritmo do desespero e fugiu em
disparada pelo corredor, alcançando a escada de emergência depois de acionar o
elevador. Nosso homem se desencaixou da mesa, tirou o pesado macacão de pintor
que incomodou os passageiros do elevador nos meses enquanto durou seu disfarce,
algemou-se à pasta com os documentos e correu para a escada, tentando alcançar
a cobertura do edifício. O barulho de um helicóptero fazia trepidar as janelas.
Nosso homem saltava os degraus carregando a garantia de um futuro anônimo. Mais
quatro andares e voaria para fora da ilha. Um policial tentou interceptá-lo no
último andar, provavelmente assustado pela figura do pintor vestido com um
colete a prova de balas e preso a uma pasta, correndo pela escada de incêndio
da sede do Serviço Secreto da Coreia do Norte. Nosso homem não tomou
conhecimento do obstáculo, neutralizado com um chute mortífero. O barulho das hélices
tornou-se insuportável. A céu aberto, correndo contra o vento artificial,
sentiu que a felicidade era compartilhada pela sua família, do outro lado da
fronteira. Antes de entrar no helicóptero, nosso homem avistou o horizonte e se
recordou da imagem dos campos de trabalho forçado, seu irmão envelhecendo anos
em segundos na sequência de cada golpe da enxada na terra árida. A poeira que
se levantava misturou-se ao vento, formando uma cortina que separou a liberdade
da fuga e a prisão imutável do passado. Kwang Ho encontrou-se com o presente
quando seus olhos registraram o dia vinte e cinco de junho de 2012; estava
dentro de um ônibus em movimento, sentado num banco ao lado da janela.”
Artigo Completo, ::AQUI::
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