Dama de vermelho


Marco Albertim * / Vermelho

“A memória está sempre à espreita, carrega consigo as chances de apalpar uma ou outra lembrança. Inda que distante a lembrança, o traço que fora sua causa segue o juízo para estorvo ou conforto do portador. No caso que segue, deu-se o conforto, visto que o portador, já sem o conchego do que imaginara ser fruto de urdumes íntimos, familiares, viu-se tão só quanto o poente que some sem a prenhez do verso que soprara na véspera.

A tarde já sumira. À sombra dos fícus de troncos grossos, meia dúzia de meninos, gritando, insistia em permanecer ali, sem a claridade do dia guiando a sonoridade de cada voz. O sabiá se calara, dois a três pardais, arrufando, rendiam-se ao escuro das folhas. O coreto, no centro da praça, de tão pardo-escuro, sequer simulava espectros. Vozes mudas, gastas no tempo e por isso mesmo com queixas, teimavam por mais um folguedo, antes de o mato taludo cobrir a terra, cercar bancos e coreto e só o vento cúmplice soprando a lembrança do que fora a distração dos sentidos. Os meninos, em fuga, curvaram-se à transição para a noite.

Só a dama de vermelho sentou-se no banco de tiras roliças de madeira; sentou-se sem apoiar as costas no encosto, rendendo-se em parte ao sorvo da hora. O tecido do vestido, inda que carente de luz, não deu sinais de rendição apesar do cerco da palidez da terra. Nutriu-se da própria cor, como se encorajado pela energia solta na porosidade da dama.

O vermelho sobrevivente ao escuro luziu. Ela levantou-se logo que se viu descoberta. O moço, do outro lado do coreto, mais distante do que ela na proximidade do banco para o coreto, distinguiu-a com cintilação nos olhos também. Viu-a inerte. O vestido balouçante levou-o ao tremor discursivo da bandeira vermelha no Palácio de Inverno. A dama não discursou, mas o riso que desatou, feliz, foi o mesmo de quem tem no propósito uma posse iminente.

Se difusos fossem os cumprimentos, nada ali estranharia as faces submissas dos dois. Mas, ora... Os olhos se abriram feito a lua ainda indecisa de sua força, à cata de súditos. Não houve choro, mas as pupilas fenderam-se no transe da rica coincidência entre a linguagem dos olhos, do juízo e do coração. Os sentidos, sublevados, fizeram murchar mais ainda caules e corolas nos canteiros suspensos entre um banco e outro.

Os sinos da igreja do outeiro, conformados à mudez de mais de uma vintena de anos, caíram num silêncio tão fundo quanto a sentença do infinito sobre a torre da Igreja do Carmo. A praça do mesmo nome, objeto de estudos para encenações teatrais, súbito quedou-se em sua perplexidade muda e cúmplice.

Os dois se olharam sem crer na própria fortuna. O rubor do tecido da dama, junto com seu frescor, incidiu nos olhos do moço a flama de uma juventude descaída na Travessa da Matriz. Lá, ele ouvira o grito tenro da moça ainda viçosa e longe de ser nubente. Ouvira-a imprecar contra o que ajuizara ser próprio de sua sisudez precoce.

Agora, abraçando seu corpo convencido de que tinha a força para se vingar dos anos. Difícil foi dizer o seu nome, porque os anos arrancaram-lhe o caro costume.

A memória ajuntou as prédicas do pároco no altar, na esquina da Travessa; sem mencionar seus nomes, mas sentenciando-os a uma troca de olhares furtivos. As prédicas ditando costumes, afastou-os; com o apoio da oração da mãe, do quiri nos olhos do pai.

Já fora da praça, na calçada, a luz do poste flagrou-os de mãos dadas. Subir a ladeira de paralelepípedos para a rua de São Bento, deu-lhes a certeza de uma vindita legítima, própria de quem evitara o precipício. A conversa deu-se franca, inda que escassa por força do transe. Na veia dos dois, o sangue quis se rebelar contra o confinamento da pele. Suaram a sordidez dos anos, sôfregos, zelosos dos traços que o tempo não tivera força para fazer sumir de seus rostos.

O vinho português servido por Jaime, setubalense, convenceu-os de que também na terrinha de além-mar, a bandeira rubra há de tremular. Como o vestido rubro de Josy, confundindo os meus sentidos. Na varanda do restaurante, ouvindo o ensaio da Pitombeira.

Agora o vento sopra com a mesma prenhez da véspera, carregado de perfumes.”

* Menção honrosa dos Prêmios Literários da Cidade do Recife, com o livro Um presente para o papa e outros contos. Integra as antologias de contos Recife conta o Natal e Panorâmica do conto em PE."

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