“Eu, que não me
sento no trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes,
esperando a morte chegar”, (Ouro de
tolo, Raul Seixas)
“Desde os 37 anos de idade, Omarzinho espera a morte a
qualquer momento. Hoje, aos 79 — mais vivo que a minha lembrança de La Belle de Jour — ele aguarda,
de uma hora para outra, o golpe fatal da senhora da foice. “Sinto que já estou
com um pé na cova e outro na casca de banana”, ele dramatiza, com o mesmo par
de olhos lacrimosos de outros tempos, ao repetir o presságio antigo.
Enquanto aguarda sentado pela chegada da morte, as
catracas cerebrais de Omarzinho maquinam: todos aqueles anos que excederam ao
seu trigésimo sétimo aniversário caíram-lhe como lambuja. Ou seja, ele já se
considera um sobrevivente na prorrogação do jogo da vida, à mercê de um apito
final do divino, do último sopro há tempos aguardado. Aguardou tão bem que se
esqueceu de curtir a vida em plenitude. “Você sabe, eu sempre quis viajar pro
exterior, conhecer Palma de Mallorca e tudo o mais”, ele lamenta, sem sequer
ter conhecido Pasargada, quem dirá, a Espanha.
Gozando de saúde de ferro (inclusive, com as juntas do
corpo bem enferrujadas), enquanto espera o passamento que há décadas lhe parece
tão iminente, o aposentado Omarzinho já enterrou a esposa, dois dos sete filhos
e um neto, criança afogada, por acaso, por puro azar, dentro dum balde d’água
durante uma faxina caseira. “Morte de criança é um horror. Velho, não. Velho já
está prontinho pra morrer. Eu estou pronto desde os 37, a idade em que o papai
desencarnou”, ele filosofa, desencarnando os dentes com um palito, enquanto
mata mais uma dose da caninha.
Omarzinho mora sozinho (perdoem-me pela rima pobre,
leitores) num casarão de seis cômodos onde cria sete gatos (cada qual com sete
vidas, ao contrário dele, que mal se aguenta com uma vida só), três vira-latas
pestilentos, milhões de pulgas e trilhões de ácaros. Há pó, sujeira, desleixo, pilhas
e mais pilhas de livros embolorados por toda a casa. “Se não estivesse tão
perto de morrer, eu casava de novo. Esta casa está um lixo”, ele admite, mas
prefere não contratar os préstimos de uma diarista para colocar ordem nas
coisas, o que seria, sem dúvida, muito mais barato que casar outra vez.
Morrer aos 37 era um evento que parecia líquido e
certo. Foi adentrado na quarta década que o pai sucumbiu — ele conta —
carcomido pela doença de Chagas, moléstia esta que Omarzinho também carrega nas
vísceras desde a meninice, chupado que foi dezenas de vezes, por dezenas de
barbeiros que praguejavam o casebre de sapé no rincão interiorano onde foi
criado. “Deus é muito bom. Pense bem: se fosse desejo dele, era para eu ter
morrido ainda mais novo que morreu meu pai. Na meninice, fui ofendido duas
vezes por cobra peçonhenta, isto sem contar uma picada de escorpião”, ele
exagera sem considerar que, sim, fora sim atacado por um escorpião amarelo,
cujo ferrão, entretanto, cravou-lhe apenas a unha do dedão do pé, sem atingir a
carne, que é a parte boa de ser injuriada. Já no caso das cobras, foi ofendido,
é verdade, mas, por cobra caninana, animal arisco, sistemático, não venenoso,
serpente das mais mequetrefes que se tem notícia. Ele jura que foram jararacas.
Não. Foram cobras caninanas.
Portanto, nos engenhos de Omarzinho, o parâmetro da
mortandade, o marco final da existência era a idade do sumiço do pai. Para ele,
parecia clarividente: ora, se o pai, como ele, era chagásico e sucumbira de
parada cardíaca (há, por acaso, dentre vós, algum leitor médico que nos possa
esclarecer se existe alguma modalidade de morte que suceda diferentemente da
cessação completa dos batimentos cardiovasculares, seja por doença abrupta ou
delongada?), certamente o mesmo sucederia com ele. “Papai foi encontrado morto
dentro do fê-nê-mê”, conta-me como se fosse pela primeira vez. Omarzinho
desconhece a verdade dos fatos: o pai suicidara. Atormentado por dívidas
contraídas na jogatina, deglutiu veneno de rato dentro da cabine do velho caminhão
de lenhas, adiando o mórbido desserviço do Trypanosoma cruzi.
Enquanto assistíamos ao noticiário, Omarzinho
demonstrou extrema indignação ao saber que morrera a moça indiana que estuprada
por um bando de bárbaros dentro de um ônibus em Nova Déli. “O Espiritismo
explica tudo, meu caro. Estes jovens sequer imaginam o mal que fizeram a si
mesmos”, ele explica, em tom professoral, como é que cabia tanta maldade assim
dentro de um ser humano.
Vangloriando-se pela leitura dos mais de trezentos
títulos de obras espiritualistas nos últimos cinco anos, Omarzinho engata nos
ensinamentos da doutrina, ao garimpar, por exemplo, justificativas plausíveis
para o câncer de pulmão que insiste em corroer-lhe os alvéolos nos últimos
meses. Atribui o mal a débitos contraídos nas existências anteriores.
Esquece-se, contudo, que fumou de forma inveterada durante quatro décadas. “Certamente,
matei algum irmão por sufocamento ou incendiei um orfanato, sei lá”, ele
lucubra bastante preocupado com as vidas pregressas, conquanto, negligencie a
atual.
Aproveitando a deixa, eu pergunto quando é que ele
reatará com os filhos que permaneceram vivos. Omarzinho é um velho teimoso,
esperto, apreciador da solidão. Ele desconversa: “São tantas as reparações, meu
jovem, que nem te conto. Vou deixar algumas para a próxima reencarnação”. Eu
insisto na viabilidade de se resolver as pendengas ainda nesta vida, ao
convocar a prole arredia para uma reunião, uma lavação de roupas sujas até que
a paz seja selada.
Omarzinho
irrita-se com a minha intromissão: “Você quer tomar o passe agora ou depois do
almoço?”. Eu, que não gosto de comida fria, escolhi a segunda opção. Foi uma decisão
lastimável: enquanto fazíamos a sesta, Omarzinho morreu dormindo, quarenta e
dois anos atrasado.”
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