Ouvidos de ouvir


Edival Lourenço, Revista Bula

“Há quem ouça a verdade ser dita pelas bocas das cacimbas, pelos ventos nas folhas de relva, pelos voos claudicantes dos pássaros e até pela borra de café em espirais no fundo da caneca.

Há quem ouça a verdade ser dita pelos lances de dados, pelos jogos de búzios, pelas pedras das runas e até pela disposição caótica dos detritos no estômago dos animais sacrificados.

Há quem ouça a verdade ser dita pelo rumor das salsas ardentes, pelos cortes das cartas do tarô, pelos imaginários signos do zodíaco e até mesmo pelos megafones famigerados de pregadores de intenções maliciosas.

Há quem ouça a verdade ser dita pela repetição incansável das ladainhas, pelos suores dos pais de santo, pelas pombas giras nos terreiros e até mesmo pelas imagens de culto em seus gestuais de gesso.

Há quem ouça a verdade ser dita pelos políticos nos palanques de comícios, pelos enxames de abelha nas tardes de setembro, pelos cupins de asas em revoadas antes da chuva e até pelo desabrochar das flores dos abricós de macaco.

Há quem ouça a verdade ser dita pelos livros de auto-estorvo, pelas filosofias de senso comum, pelas simpatias de comadres solícitas e até mesmo pelos calafrios na mudança de temperatura no final do entardecer.

Há quem ouça a verdade ser dita pelos torpores de agosto, pelos sonhos de mau jeito, pelos cantos da acauã e até mesmo pelo cardiograma de Deus nas linhas quebradas dos relâmpagos.

Há que ouça a verdade ser dita pela boca do maluco de pedra, pelo adivinho de araque, pelo profeta falsamente inspirado e até mesmo pelas reticências de calendários interrompidos.

Há quem ouça a verdade ser dita pelas vozes dos místicos, pelas alucinações dos malucos, pela ignorância dos desinformados e até mesmo pela arrogância de doutores em ciências edificadas sobre princípios de bases falsas.

Há quem ouça a verdade ser dita pelas manhas da cartomante, pelas linhas traçadas nas mãos, pelas vozes sem emissores diante dos altares de imolação e até mesmo pelo zurrar do jumento no meio da noite.

Há que ouça a verdade ser dita pelos pergaminhos de superstições antigas, pela profusão de notícias que vêm de todos os lados, pelo silêncio a muito custo conseguido e até mesmo pelas intuições geradas em seus próprios temores.

Há quem ouça a verdade ser dita pelas vozes dos anjos, pelo bolor atmosférico, pelos riscos das estrelas cadentes no céu noturno e até mesmo pelas revelações havidas em estado de dormência.

A verdade. Ah, a verdade está em tudo entranhada, como o arroz e o timbete, como o trigo e o joio. A verdade não seria apenas a face mais crível da mentira? A verdade está por aí, diluída em tudo. Quem tiver ouvidos de ouvir que ouça. Mas, por favor, não me conte!”

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