“Ela pousou a testa no meu ombro e eu senti
seus cílios encostando na minha pele e a abracei bem forte para ter certeza de
que ela não iria embora outra vez como nas outras vezes em que acordei e o
lençol macio roçava meu corpo como uma farpa e eu tentava lembrar o sonho que
eu tive com ela pelo menos um sonho mesmo um pedaço de sonho mas nada e só
havia a foto onde ela parecia séria demais os óculos de grau e tartaruga os
cabelos desalinhados a mesma boca que conheci tantos anos depois a mesma boca o
retrato era tudo que eu tinha e eu tentava não chorar quando olhava pra parede
o durex amarelado o rosto sério demais o casaco enorme para um corpo tão
pequeno mas quando foi mesmo que ela foi embora se ao menos pudesse saber
porque talvez sentisse um alívio um pequeno alívio esbarrando naquela dor claro
que a culpa foi minha eu não tinha sensibilidade suficiente é isso eu não tinha
sensibilidade suficiente para ler os pensamentos que faziam dela o meu amor ela
era o meu amor e talvez o que eu sinto por ela tenha nascido dessa
incompreensão — quem é essa mulher que me olha tão fixo a espera de respostas
foi isso que eu pensei no bar enquanto ela bebia água sem gás as franjas
irregulares minha boca à espera de um beijo e ela chegou tantas vezes sem malas
sem roupas de frio naquele inverno úmido demais aquele gelo e nunca mais e eu
acordo e durmo e tomo pílulas que me ferram por dentro olho a porta na certeza
do meu amor chegar carregando seus livros suas canetas os óculos de grau e
tartaruga e nem um bilhete alguma coisa que eu possa ter além da foto onde ela
aparece séria demais e essa chuva na janela o último beijo que eu nunca lhe dei
e os dias passam e eu durmo e acordo durmo e acordo durmo.”
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