Meu porquinho-da-índia


Ela era minha independência, a segurança
de que nunca mais ouviria gozações por
causa de minha letra. Ela era minha defesa.
Foto: Ícone de exibição de Anthony Albright
Galeria de Anthony Albright/Flickr

Menalton Braff, CartaCapital

“Conversar com poetas pode ser perigoso porque o resultado podem ser crônicas e outros cometimentos. Principalmente se o poeta é um ser que desceu ao mundo em um feixe de luz, como alguns que eu conheço e que têm o polegar verde. Hoje de manhã conversei com um que ameaça aposentar o polegar por absoluta inutilidade. Então o poeta me contou que nos tempos de sua infância havia mais verde e muito menos poluição. As crianças brincavam de roda e não visitavam psicanalista. Acabou de me dizer isso e sumiu nos seus primeiros anos de vida. Foi por causa dele que viajei até minha infância, viagem que os poetas fazem com a maior facilidade.

Um dia meu pai me chamou e me disse, Agora tu sentas aí, que chegou tua vez. Era na mesa da sala, sobre a qual havia um livro aberto. Sentei e comecei a ler em voz alta o que estava naquela página. Ele não disse nada, mas me olhou espantado, a pele um pouco mais vermelha do que o natural. Mal sabia meu pai que, enquanto alfabetizava minha irmã mais velha, eu ficava por ali sapeando, fingindo que brincava, mas na verdade maravilhado com aqueles risquinhos todos que se transformavam em histórias. Desde aquela época tenho a impressão de que ele não gostou muito do jeito com que frustrei seus impulsos pedagógicos. Sim, porque me pareceu pura vingança quando ele afastou o livro e jogou debaixo de meu queixo um caderno e um lápis. Então copie isto aqui, ele ordenou. Meu deus do céu, foi aí que começaram minhas torturas.

Ler me dava imenso prazer, porque meus olhos criavam significados, mas escrever, ah, não, isso já parecia uma agressão a um corpo que ainda não passara dos cinco anos e que não dominava dedos nem mãos. O l e o e saíam iguais e me dava um baita ódio quando escrevia mim e os outros liam num, ou mini, ou qualquer outra coisa que não estivesse lá. Cresci sabendo que não tinha letra bonita. Eu, cujo pai tinha feito curso de caligrafia, e escrevia como quem borda. Nem o patinho feio sentia-se tão mal.

Ah, como é doce a vingança! Um dia resolvi fazer um curso de datilografia e passei a escrever furiosa e desaforadamente.

Pouco tempo depois, comprei minha primeira máquina. Era uma Remington preta, só minha, que não se escondia debaixo do fogão nem era um porquinho-da-índia, mas acho que foi minha primeira namorada. Que ninguém tocasse em minha Remington, porque dava briga. Ela era minha independência, a segurança de que nunca mais ouviria gozações por causa de minha letra. Ela era minha defesa.

Muitas coisas fizemos juntos, minha Remington e eu. Sinto saudade de mim e dela também. Depois vieram as Olivettis — as Letteras e as outras. Uma delas, bem me lembro, tinha linhas modernas, era elétrica e muito baixa. Se não me engano, seu nome era Lexicon, ou qualquer coisa assim com esse estilo futurista. Nunca fui muito feliz com ela. Tinha um rolinho branco, para apagar letras ou palavras erradas, e não houve manual de instruções que me fizesse aprender a colocar um rolinho daqueles no lugar certo. Coitada, deve andar por aí até hoje, jogada em algum canto, porque em seguida comprei um micro de 21 Megas, que era um milagre da tecnologia.”

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