Só falta o ministro negro do Supremo achar que é Django Livre e sair por aí fazendo justiça com as próprias mãos
“Puxadinho. Maracutaia. Gambiarra. Acochambramento.
Gato. Tramoia. Migué. Malandragem. Cafezinho. Comissão. Vista grossa. Esse
jeitinho brasileiro de fazer as coisas erradas darem certo ainda vai acabar nos
matando. Legado de ignorância ou má fé, o brasileiro encontra jeito para tudo,
valendo-se de muita criatividade, improviso e certa dose de desonestidade.
Eu lucubrava a respeito disso enquanto uma mulher
furava a fila do cinema, a minha frente, com mais três amigas e um gordinho
efeminado com um pavão tatuado no deltóide (Deus me livre de qualquer
preconceito!). A justificativa da deseducação foi que uma outra fulana
“guardava os seus lugares na fila” enquanto o grupo terminava de fazer um
lanche rápido na praça de alimentação do shopping. Naquele instante, eu, sim,
alimentava o desejo contido de esbofetear os safardanas (eu sabia que eles
mentiam deslavadamente), mas reservei meu sentimento rasteiro para a esfera
ficcional, quando adentrasse naquele recinto para assistir ao “Django Livre”,
de Quentin Tarantino (Django Unchained, 2012).
Enquanto nutria uma raiva controlada daqueles
estranhos mal educados (será mesmo pecado odiar, ainda que em segredo, irmã?!),
fiquei matutando, digerindo a tragédia ocorrida em Santa Maria, na qual
dezenas de jovens morreram queimados, pisoteados, sufocados por fumaça tóxica
dentro de uma boate, na madrugada de domingo.
Na efervescência dos noticiários, no clímax das
lamentações e das conclusões imediatistas, havia rumores de que o local, embora
possuísse um alvará de funcionamento do município, era impróprio para abrigar a
multidão de adolescentes. Será que a infernal danceteria ardeu por conta da
imprudência, da negligência, da ganância, da sucessão de equívocos e dos
peculiares ajeitamentos brasileiros? Polícia Civil e Ministério Público Federal
montam os cacos, enxugam o leite derramado, chafurdam nos escombros em busca de
culpados.
Os crentes mais fervorosos — criaturas puras, fracas,
ignóbeis, estreitas, os hiper-temerosos a Deus que jamais cogitam a mera
possibilidade das desgraças terrenas serem devidas única e exclusivamente aos
próprios seres humanos — comentam, num arroubo simplista dos mais imbecis, e
que lhes é deveras peculiar: Deus “Kiss” assim. Se Deus quis ou não quis, só
saberão nunca, ao morrerem, quando pás de cal cobrirão suas carcaças
esperançosas de paraísos, condenando-os ao mais risível e impensado anonimato. É
como disse, sabiamente, o escritor Edival Lourenço: passados cem anos, a chance
de ninguém mais se lembrar que nós existimos é imensa.
Não sei bem como dizer isto, mas, eu ando com uma fome
danada de cidadania, uma impaciência brutal com os energúmenos, os malas, os
espertalhões, os caras que me ultrapassam pela direita, gente que não me diz
“bom dia” ao entrar no elevador, os safadinhos furadores das filas dos bancos,
das padarias e até dos precatórios (vai cobrar comissão da puta que te pariu,
safado!). Incomodado com a sensação de certo isolamento moral, de atolamento
ético dos meus compatriotas, risquei da minha “lista dos mais mal quistos”
aqueles enxeridos, e pisei o carpete do cinema (melhor pisar no carpete que no
pescoço deles).
Nestes dias, eu estou que não me aguento. Desde que
ouvi a classuda canção “Django” (versão de Roberto Bia, 1966), que abre o filme
de Tarantino, não parei mais de assobiá-la. Ninguém merece: é de dar cãibra no
rosto. Mesmo me divertindo muito além do razoável com a matança caricata do
diretor americano, eu concluo que o filme é apenas bom. Na minha leiga
avaliação, não passa disto. Depois de conceber “Bastardos Inglórios”, a saga
tarantiniana pelo filme perfeito será — esta sim — deveras inglória.
Cacei na trama do filme — com a mesma determinação do
caçador de recompensas, magistralmente interpretado pelo ator Christoph Waltz —
onde foi que os ativistas negros norte-americanos encontraram “desrespeitoso
preconceito racista” em Tarantino, mas não descobri nada. Inclusive, pareceu-me
que qualquer dúvida quanto à boa fé do cineasta explode junto com a sua
personagem — para variar, Tarantino faz ponta no próprio filme — quando ele é
detonado com dinamite pelo justiceiro Django. Uau! Bem feito, homem branco e
mau!
Lá pelas tantas, enquanto o filme perde um pouco de
fôlego, eu acabo por me distrair, ao ponto de lamentar não ter nascido
pedregulho da estrada, ao invés de gente. Ocorre que, em termos de escravatura,
tivesse eu vivido naqueles tempos de barbárie, certamente chicotearia os meus
próprios escravos, só por passatempo; ou tiraria lascivo proveito das
adolescentes negras sempre que me desse na telha. Enfim, partindo de um
branquelo almofadinha, fazer discurso contra a escravidão e racismo nos dias de
hoje soa mais falso que um alvará vendido pela prefeitura.
Quem comenta é Léo Galinha: “Só falta o ministro negro
do Supremo achar que é Django Livre e sair por aí fazendo justiça com as
próprias mãos”. Conversa de boteco é assim: serve pra quase nada além de matar
o tempo e a sede dos presentes (a despeito da nova Lei Seca, que sepultou a
satisfação das mulheres em comerem bombons recheados com conhaque e saírem
dirigindo pelas ruas da cidade... quanta crueldade...).
Léo assume que não gosta dos negros, embora não aceite
a alcunha de racista (?!). Foi ao cinema, única e exclusivamente, intimado pela
patroa — loira até a última gota de tintura para cabelos — e não gostou nem um
pouquinho do que viu: “Maldita Princesa Isabel...”, ele caçoa, brinca, exagera
no sarcasmo, testando até aonde vai a nossa amizade.
Léo acha um disparate que “pobre compre carro” e que
“um negro presida uma instituição tão importante quanto o Supremo”. Não sei do
que o Léo tem mais medo: de contrariar a esposa e tomar uns sopapos dela, ou
que a ficção, além de incitar a negritude, torne-se realidade, ao ponto de um
“ministro negro” pensar mesmo que seja uma espécie de justiceiro vingador
pós-Quilombo dos Palmares, e nos castigue com a força destemperada do cajado da
lei, até que ele nos iguale (se é que um dia fomos diferentes, no que tange às
tripas e corações). Sei que o ministro não está lá pra isso. A lei, em
essência, vale para gente de toda cor, embora não pareça.
Quanto ao crudelíssimo portfólio de
atrocidades impingidas aos negros ao longo da história, no Brasil e no mundo,
todo tipo de expiação legal aos intolerantes remanescentes ainda será pouco. Solte
o Django Livre que existe em você! E haja quetichupe espaguetiano, Senhor
Tarantino...”
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