Menalton Braff, CartaCapital
“Parece que alguém já deve ter afirmado
alguma coisa sobre a frequência de bar: cada um frequenta o bar que merece.
Isso não me consola e continuo morrendo de inveja do João Ubaldo Ribeiro, que
fica atiçando a imaginação e a vontade de simples mortais, como este que vos
fala, com Flor do Leblon e Tio Sam. Não tenho remédio senão contentar-me com o
bar do seu Juca Amaro, ali perto da padaria, aqui mesmo em Serrana. Sentado
em cima de uma caixa de cebola, costumo ouvir com atenção o que pensa o povo e,
principalmente, procuro entender as opiniões de um de seus melhores
representantes, meu amigo Adamastor, que já circulou por estas páginas.
Ontem o assunto, não sei como isso foi
acontecer, era cultura. Parece que há um clima de insatisfação de algumas
pessoas com o modo como a matéria vem sendo conduzida pelo poder público em
geral no Brasil. Bem, mesmo sem conhecer perfeitamente a gênese da conversa,
prestei atenção, interessado que devo pelo menos ser no assunto.
Pois acontece que o Leonardo, filho do seu
Juca, futuro bacharel e orgulho da família, não concordava com o Adamastor, e
sua discordância ameaçava nossa paz. Tive de pedir mais uma cerveja e exigir
que os dois levantassem um brinde à paz mundial para que em tom mais ameno o
rebento do seu Juca expusesse suas idéias. Uma boa discussão é assim: todos têm
oportunidade de falar e ninguém precisa ganhar no grito. Grito não é argumento.
Num sentido amplo, disse o Leonardo,
cultura é tudo aquilo que se opõe a natural. Tudo aquilo que depende do homem.
Assim, sexo é natural e casamento é cultural. Mas mesmo entre as formas do
sexo, algumas são mais naturais que as outras.
O Adamastor apelou: pô, você não está
sugerindo que o governo invente agora de cuidar de nosso sexo.
Os olhos do dito rebento massacraram o
Adamastor. Tive de intervir novamente.
E o meu jogo de damas? Perguntou meu amigo.
Meu jogo de damas não é cultura?
O jovem bacharelando continuou: secretaria
de cultura tem de cuidar de cultura, mas num sentido mais estrito. É de arte,
que se trata. E entretenimento não é arte. Ninguém sai de um entretenimento
mais sábio, melhor, mais humanizado. Pode sair mais descansado. Mas sai do mesmo
tamanho. Arte não é passatempo.
O Adamastor cochichou ao meu ouvido: esse
cara é elitista. Tive de pedir que ele se calasse mais uma vez.
O baile da saudade, disse o Leonardo Amaro,
é cultural, nem por isso precisa da assistência de uma secretaria governamental.
E se precisar, não é de uma secretaria que deve cuidar da cultura. O baile da
saudade não é arte. Esporte, bem-estar social? Sei lá, ele disse, menos da
cultura.
O ambiente, que parecia ter acalmado,
sofreu a interferência de outros circunstantes. Nem todos eu conhecia e me
recusei a pagar uma rodada de cerveja pra tanta gente. Meteram-se no assunto,
pedindo mais música sertaneja nas praças do Brasil. E por conta de nossos
impostos.
O filho do seu Juca Amaro esvaziou um copo.
Lambendo ainda a espuma, ele esclareceu: arte erudita é diferente de arte
popular que não tem nada a ver com arte de massa. Esta última não precisa do
poder público. É auto-sustentável. Arte popular precisa de apoio porque é
praticada por aqueles que de menos recursos dispõem. Mas é a arte erudita,
apesar de ser a mais elitizada, a que mais precisa de apoio do poder público. Uma
orquestra sinfônica, em nossas cidades, não se mantém sozinha, e é uma das
maiores aquisições da civilização. A transmissão escolar, o desenvolvimento técnico,
o grau de perfeição alcançado, a sensibilização, tudo isso é obrigação do poder
público manter. Vocês admitem uma cidade sem escola? Um homem sem escola também
vive, assim como sem orquestra sinfônica. Mas viver, então, é mera função
animal.
Quando ameaçaram dar uma surra no rapaz e
ele teve de fugir para trás do balcão, joguei uma nota de vinte na mão do seu
Juca e vim ler alguma coisa do Theodor Adorno, que sabia, dessas coisas, muito
mais que nós.”
Foto: The Staalmeesters, Rembrandt
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