“O desejo tem cada vez mais a ver com a exceção, e a vida na praia é excepcional”

Foto tirada na praia durante a infância do autor

Marsílea Gombata, CartaCapital

“No onírico A Vida Descalço (Cosac Naify; R$ 45), o argentino Alan Pauls busca racionalizar o (praticamente) impossível: a sensação que a praia nos traz. Em uma mescla de ensaio e relato autobiográfico, o autor de O Passado, recorre a testemunhos de nomes que o inspiraram – como o escritor argelino Albert Camus e o cineasta francês Eric Rohmer – para ilustrar imagens de suas vivências e outras edificadas pelo imaginário popular sobre a aura criada nas mais diferentes faixas de areia: Villa Gesell, Cabo Polônio, Florianópolis, Punta del Este, Rio de Janeiro (onde em 1970 viveu uma experiência um tanto quanto traumática por conta do “branco lunar” de sua pele).

Por que discorrer sobre a praia? Em entrevista a CartaCapital o escritor nascido em 1959 explica que o local intriga por funcionar como um “teatro de castidade experimental”. “Trata-se de um espaço utópico: milhares de corpos que convivem em estado quase primitivo, praticamente desnudos, submetidos a temperaturas altas e estímulos (…). Talvez seja um laboratório onde se aprende a moderar as paixões”, arrisca.

São pouco mais de 90 páginas nas quais o autor, como em outras ocasiões, fala da infância marcada pela presença do pai alemão que chegou à Argentina ainda criança e do irmão, com quem dividiu as primeiras experiências em território praiano. Apesar dos textos curtos que preponderam, o livro contém alguns períodos que se mostram densos e um tanto longos.

Além da contínua indagação sobre o que nos leva à praia – “vamos sempre atrás (…) das marcas do que o mundo era antes que a mão do homem decidisse reescrevê-lo” – a obra é marcada também pela crítica que Pauls faz sobre o status de erotismo dado ao universo beira-mar. “Não suporto a areia como leito sexual, e ninguém ignora, por mais que os hidólatras esperneiem, que a água, principalmente a do mar, dificulta qualquer tipo de fricção erótica”.
O livro faz ainda uma espécie de homenagem ao pai do escritor argentino, que aparece como coautor. As fotos que ilustram a obra, e são parte do arquivo pessoal de Pauls, foram tiradas por ele.

Carta Capital – Em A Vida Descalço você está mais desnudo?
Alan Pauls – Mmm… Se por “desnudo” se entende “invisivelmente mascarado” pode ser. Mas não “desnudo” no sentido confessional da palavra.

CC – Por que praia?
AP– Porque é um dos espaços onde se vê mais claramente que não há nada mais cultural que a natureza.

CC – A importância da praia se daria pelo fato de ser um território atemporal e causador de uma abstinência necessária à reflexão?
AP– Em certo sentido, a praia é um espaço utópico: milhares e milhares de corpos que convivem em estado quase primitivo, praticamente desnudos, submetidos a temperaturas altas e estímulos intensos (odores, visões, forças naturais), e, sem dúvida, tudo é estranhamento civilizado. Talvez seja um laboratório onde se aprende a moderar as paixões. Um teatro de castidade experimental?

“O desejo tem cada vez mais a ver
com a exceção, e a vida na praia é
uma vida excepcional”,
afirma Alan Pauls

CC – O sonho só é possível em territórios assim? Como sonhar, então, na cidade?
AP – Uma praia é feita, basicamente, de areia, céu e mar, três superfícies que funcionam muito bem como telas. Por isso se sonha tanto na praia. Na cidade continuamos sonhando, mas os sonhos que sonhamos quase sempre foram sonhados antes por outros (o cinema, a televisão, tudo o que vemos online etc).

CC -A “virgindade” da praia, em sua opinião, funciona como um alinhamento interno, ajudando a retomar nosso centro ao lembrar o estado natural do homem? As grandes cidades seriam, portanto, um contraponto a esse contexto?
AP – As praias virgens são um mito, uma dessas fábulas impossíveis que servem para que o espaço real – as praias realmente existentes, como se dizia antes do socialismo – mude e, às vezes, se degrade sem que ninguém proteste muito.

CC – Como enquadraria o A Vida Descalço em sua obra?
AP – Como um “entrelivro”. Eu o escrevi sob encomenda, rápido, pouco depois de terminar uma novela enorme (O Passado), quando não sabia muito bem que rumo ia tomar meu trabalho. E, de algum modo, me serviu para ensaiar alguns caminhos que depois desenvolveria em minha trilogia das histórias: História do Pranto, História do Cabelo e História do Dinheiro (que é lançado agora na Argentina e na Espanha).


CC –  Em outros livros seus, de alguma forma, você buscou resgatar passagens da história política da Argentina, o que nos leva a pensar que se trata de um tema importante para você. Como então enxerga o atual momento político pelo qual passa seu país?
AP – É um momento tenso, contorcido, nem sempre regido por bons modos, com um governo que tende a confundir prepotência e paranoia com firmeza (algo muito típico da segunda leva de peronistas), além da oposição mais indigente, medíocre e mesquinha de toda a história política argentina.

CC – Em um trecho da obra você fala de promessas e nostalgia que a praia nos traz. Quais seriam elas?
AP – Nostalgia do mundo tal como era antes de o homem o pisar. Promessa de um mundo completamente dedicado ao ócio e à preguiça – ao menos para mim, que vou à praia para fazer nada mais do que ler, já que detesto esportes.

CC– Há relação entre o ato de escrever e o viver a praia? Como seria?
AP – Nunca pude escrever nada da praia, apenas ler. Em 15 dias estirado em uma rede leio mais que em um ano todo de trabalho.

CC – Por que, em sua opinião, a praia ganhou esse peso erótico do qual você discorda?
AP – Não sei. Mas também não entendo o erotismo dos bancos de trás dos carros, dos uniformes das enfermeiras ou dos filmes eróticos. Suponho que seja porque o desejo tem cada vez mais a ver com a exceção, e a vida na praia é uma vida excepcional, no sentido de fora da norma.

CC– A experiência pela qual passa na praia hoje é a mesma que sentia na infância e adolescência? O que mudou?
AP – Não mudou nada. Na praia, como quando estou no avião, volto a sentir a mesma excitação inocente que senti quando pisei ali pela primeira vez.

CC – Misturar passagens autobiográficas com obras que o influenciaram, recurso muito presente em sua obra, seria uma maneira de dizer que a vida e a arte são parte do mesmo universo ou, ainda, que a segunda busca refletir a primeira?
AP – Não refletir, mas, talvez, contaminar. O ensaio é precisamente essa contaminação convertida em gênero literário. Pode-se mudar de registro, de tema e de tom em qualquer momento, sem pedir permissão.

CC – Colocar fotos pessoais nas quais você e seu irmão são retratados por seu pai é uma maneira de fazer com que ele seja um conarrador em A Vida Descalço?
AP –  É mais uma testemunha ou um voyeur, além de um instigador.
Sem a militância de meu pai – um verdadeiro fundamentalista do sol e do mar, como quase todos os nascidos em meados dos anos 30 –, duvido que a praia teria sido para mim a experiência que foi.”

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