Rodolpho Motta Lima, Direto da Redação
“Cresci
envolvido pelo cinema norte-americano. Isso acontecia com toda a minha geração,
que se deliciava com as comédias musicais, com os filmes épicos e, no meu caso,
principalmente com os filmes do Far West, os filmes de cowboy com seus heróis
sempre dispostos a enfrentar bandidos dos mais variados matizes, cujo
extermínio era algo necessário e desejado ao longo de todas as narrativas.
Embora, hoje, o
distanciamento no tempo e o espírito crítico que adquiri me façam rever esses
filmes com olhos totalmente distintos, não esqueço aquele encantamento de
menino com a obra de John Ford nem a identificação com que mitificava, entre
outras, a figura de John Wayne, o durão sempre disposto às ações mais dignas no
combate ao mal e na luta pelos mais fracos. O que eu não tinha era o
discernimento para identificar quem eram os mais fracos...
O cinema americano, ao longo
dos tempos, continuou a multiplicar seus personagens heroicos, apenas renovando
os inimigos a combater. De repente, não eram mais os índios sanguinários e
colecionadores de escalpos. Pelo contrário, o próprio juízo crítico dos
cineastas foi mostrando que a verdade não era bem a que os filmes antigos
contavam, e que era possível enxergar nos índios elementos cujos valores às
vezes excediam o dos pretensos heróis brancos. Acho que “Um Homem chamado
Cavalo” e “O Pequeno Grande Homem” foram os primeiros impactos nesse sentido:
começaram a me fazer ver o outro lado da história da chamada “marcha para o
oeste”, o lado do extermínio de uma etnia e da ocupação violenta do seu
território. Eu não era mais apenas o menino fascinado pelo cinema, mas um jovem
que lia e procurava entender a complexidade do mundo em que vivia. E que, por
isso, deixou de acreditar em mocinhos e bandidos, compreendeu que quem conta a
história é quem vence, percebeu que qualquer fato era sujeito a versões, a
opiniões, às vezes totalmente opostas..
Foi assim que aprendi a
perceber que também os mexicanos não eram tão sujos e bêbados como sempre
apareciam, e que havia uma história e uma intenção atrás do preconceito com que
eram apresentados ao grande público. De lá para cá, sempre procurei outras
fontes, que felizmente existem, e me acostumei a pensar que é sempre bom estar
atento a mais de um lado de cada questão apresentada, não mais no cinema, mas
na vida real, principalmente no campo dos interesses econômicos e políticos.
Tudo isso vem a propósito de
dois episódios que frequentaram o noticiário da semana que se encerra , ambos
envolvendo os Estados Unidos: as terríveis explosões das bombas na Maratona de
Boston e a votação no Congresso Americano que rejeitou a proposta de Obama no
sentido da regulamentação de venda de armas , decisão que o próprio Presidente
qualificou de “vergonha nacional”.
Não se trata, aqui,
apresso-me em dizer, de “gostar ou não” dos Estados Unidos, ser ou não ser
“americanófilo”. Na forma americana de ser, coexistem, ao lado de padrões
comportamentais e filosóficos que muitos consideram emblematicamente positivos,
aspectos menos nobres, entre eles a violência, um dos seus ícones históricos e,
por isso, autêntico calcanhar de Aquiles do Império do Norte. Os americanos
vivem se envolvendo em
guerras. Indios, mexicanos, alemães, japoneses, coreanos,
vietnamitas, iraquianos, afegãos, compõem uma incalculável legião de inimigos
colecionados ao longo de sua história. Não entro no mérito de cada um dos
conflitos em que eles se meteram e quem quiser que o faça: seria leviano, por
exemplo, comparar a motivação da luta contra o nazismo com a de qualquer das
suas demais escaramuças bélicas. Mas o fato é que os EUA foram, gradativamente,
ocupando o espaço de xerifes do planeta, com apregoadas razões humanitárias
–defesa da democracia, da liberdade, dos direitos humanos - que alguns nem
sempre consideraram verdadeiras. E haja armas para fazer valer essas razões...
Esse clima conflituoso
também persegue internamente a saga americana, marcada por histórica secessão e
por acentuada visão discriminatória. Lincoln, os irmãos Kennedy , Martin Luther
King e outros estão aí a mostrar até onde puderam ir as suas desavenças
internas. Não ajuda muito, creio, o extremado valor cultural atribuído ao
individual, tendo como subproduto o direito indiscriminado de portar armas e o
consequente risco dos tristes massacres que lá se verificam de tempos em tempos. Tudo amparado
subliminarmente por uma enxurrada dos filmes violentos, onde, ao lado de
cultuados heróis modernos, predominam as balas, as explosões e as catástrofes E
haja mais armas...
No momento em que escrevo esta coluna, os
autores do atentado já teriam sido identificados como dois jovens irmãos
chechenos , estudantes nos EUA, um morto e o outro quase. Eles podem ter sido
instrumentos de uma absurda e sempre detestável ação terrorista arquitetada de
fora do país, um infeliz de capítulo a mais do inaceitável conflito político,
ou religioso, ou econômico, que separa espaços planetários, cada qual com seus
fundamentalismos característicos. Mas também podem ser exemplos de uma
manifestação do terror doméstico, na linha de tantas outras que já se
produziram nessa sociedade que, desde os tempos do bang-bang, privilegia o
porte de armas. Qualquer das duas hipóteses – terrorismo externo ou interno -,
que podem até se complementar, deveria provocar , mais do que a euforia patriótica
pela eficiência dos órgãos de segurança, uma séria reflexão da sociedade
americana sobre as razões e motivações capazes de originar desgraças desse tipo.”
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