Mauro Santayana, Blog do Santayana
“Não haverá manhã
como aquela, em nenhum dia que vier ao mundo. Disso meus olhos sabem e sabe o
meu coração. A noite me apanhara na entrada do povoado, que percebi pelas luzes
fracas, algumas de lampião a querosene, outras, tênues e hesitantes, na certa de
lamparinas de óleo de mamona.
Eu perdera a
estrada mais larga, que levaria ao meu destino, talvez em instante de cochilo,
e o cavalinho tordilho, o primeiro que eu tive, bandeou para a trilha. Naquele
tempo, supersticioso, eu sempre acreditava que era melhor confiar o destino ao
acaso. Quem quiser achar-se, que se perca, era a frase que me servia. Tinha
minhas razões: ao desviar-me da rota, havia escapado de tocaias e tempestades,
de andaços de doença e até mesmo de onças, e disso soube depois.
Fui seguindo a
sombra da tarde, o que me levava ao leste, o que contrariava minha tenção, mas
segui o focinho do tordilho, para o qual ainda não arranjara nome. O que me
disseram que tinha antes, Borboleto, não me agradava. Ainda se fosse
égua, e se chamasse Borboleta, ia bem; mas macho inteiro e sério, esse
nome era uma ofensa ao bicho, dócil no passo, mas esquentado no trote e no
galope.
Com a noite
chegando, já preparava o corpo para pernoitar na estrada e buscava um lugar no jeito
para espichar o baixeiro e fazer cama, quando um clarãozinho de nada, por cima
do morrinho, me deu esperança. Fui em frente, tocando de leve com a tala no
lombo do bicho, para que se apressasse, e percebi as luzinhas. Não foi preciso
mais: ele, talvez cheirando o ar, trocou o passo pela marcha, e chegamos ao
povoado.
Todas as portas
estavam fechadas, mas não há lugar, por pequeno que seja, sem um comercinho que
fecha mais tarde. Depois de recensear um pouco as duas ruas, vi a porta
escancarada. Cheguei e me indicaram a casa da moça que dava pouso aos
passantes, e era recatada com os do lugar. “Ela não gosta dos homens daqui, diz
que todos eles são seus parentes, mas não é a mesma coisa com os de fora”,
informou o dono do botequim, antes de me servir uma cachaça curtida em
cipó-cravo.
Hesitei um
pouco, antes de bater à porta. Um leve sobressalto parecia prevenir-me - quem
sabe? - de uma emboscada. Refiz-me e bati à porta, e dentro não havia luz. “Espera
um pouco”, ouvi, mas continuava a escuridão, quando ela vestida com uma
camisola pesada e comprida, abriu a porta e me levando pelo braço, empurrou-me
para dentro de um quarto de solteiro. “Tem uma lamparina aí dentro, você tem
fósforo?”
Saiu e entrou
para seu próprio quarto, ouvi o ferrolho ser passado. Duvidei da informação do
dono da birosca. Ela não gostava também de estranhos.
Cansado, tentei
ainda ficar acordado, esperando que ela fosse ao meu quarto, mas dormi. Acordei
com todos os galos do povoado cantando ao mesmo tempo. A luz da madrugada
entrava pela beira do telhado sem forro. Saí para o quintal, havia uma bica;
depois de outro ato matinal, impositivo, entre duas moitinhas de cambará, lavei
o rosto e molhei os cabelos.
Ela, então,
apareceu, morena, com os olhos negros mais belos que eu jamais vira, e me
convidou para contemplar o amanhecer pela janela de seu quarto. O quarto
destoava do resto da casa, pintado de azul e acortinado. Abriu a janela,
desfazendo o laço da cortina, e o sol começou a levantar-se sobre uma serrinha
que eu não vira. Do que se passou, cavalheiro que sou, não dou detalhes. Deixou-me
descansar dos meus deveres de hóspede e me preparou o prato modesto de ovos com
torresmos e feijão machucado, e me disse que a manhã acabara, e eu devia seguir
viagem – mas não me indicou destino.
Aquela foi a
mais bela manhã que meus olhos viram.”
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