Mauro Santayana, Blog: MauroSantayana
“Quando os anos se juntam, a memória passa
a ser filme que se remonta sempre e sem critério: não posso dizer, com certeza,
onde se encontra a estrada de poucas léguas, nem se todas as lembranças
me pertencem. Com os anos se amontoam os caminhos, bifurcam-se e se
cruzam, e há mesmo os que retornam em círculos contínuos. Tal como os dias,
sempre debaixo do mesmo sol, os caminhos estão sobre o mesmo solo, e rasos;
estreitos e curtos são os caminhos subterrâneos, que Deus nos salve.Era
estradinha arrumada em cascalho miúdo e vermelho, e saía da rodovia
escondendo-se atrás de um morro vestido de candeias e canela-de-ema. Logo depois
da curva estava a meia-ponte: apodrecera a viga lateral direita e caíra, era o
que deduzia, arrastando as pranchas pela metade. Viam-se as suas pontas, com as
fibras agudas, espetando o ar.
Restavam os dois troncos de guaribu, o da
esquerda e o do centro, e pareciam petrificados pela necessidade de pagar
pela fraqueza e deserção do outro, que, esfacelado, jazia no fundo do córrego.
Se a estrada estava tão bem cuidada, com touceiras de capim santo plantadas
para o adorno das beiras, por que não consertavam a ponte? Uma resposta veio
bem adiante, depois de outros espantos, pelo serrador que abria ao meio um pau-d'arco:
“Esses consertos nunca dão certo. Se a
gente puser uma tora nova do lado direito, o lado esquerdo vai cair. Cristo,
que entendia de madeira, porque o padrasto era carpinteiro e o pai é arquiteto,
disse que não se põe remendo novo em pano velho.”
A melhor resposta veio depois. Logo passada
a ponte, ou a meia-ponte, estava o estranho edifício vergado, e seu construtor
entristecido. “Faz muitos anos que eu tento, e já gastei nisso minhas boiadas,
e não consigo fazer a torre dos 1.728 degraus. Eu tive uma visão e sei que se
fizer a torre nessa altura poderei chegar ao céu.”
Eu lhe disse que, faz muitíssimos anos,
outros homens quiseram fazer o mesmo e Deus os confundiu torcendo-lhes a língua.
“Vê, ali ao lado? Primeiro tentei com
pedras e não foi além do primeiro vão de 12 degraus. Achei então que era melhor
fazê-la em bambu, que é leve, mas veio o vento que aqui a gente chama de
galopeiro, e eu já estava no terceiro vão. Agora, o senhor vê: com esteios dos
melhores, estou nas cinco dúzias e a torre está entortando.”
Perguntei-lhe por que fazia a conta dos
degraus em dúzias e ele explicou que, de acordo com sua visão, devia construir
uma dúzia de dúzias de dúzias, o que queria dizer uma grosa de dúzias ou uma
dúzia de grosas. Eu então lhe disse que fizesse como os egípcios e construísse
uma pirâmide. Porque a pirâmide, acho que foi isso que pensei então, é ao mesmo
tempo torre e ponte, e o que é uma torre senão uma ponte inconclusa? Ele então
fez suas contas e disse que precisaria de muitas pedras para começar com uma
base de 1.728 pedras de cada lado do quadrado e chegar à coluna central e
imaginária da pirâmide de 1.728 pedras. E olhou esperançoso para o imenso
rochedo ao longe.
Deixei o homem diante da torre que se
vergava e encontrei a mulher fiando, o jogador com o baralho de cinco naipes e
o rapaz que assava espigas de milho. Estavam os três de frente para a estrada,
como se estivessem sobre uma grande e movimentada praça. A muIher cantava
uma décima sertaneja, que falava em flor de maracujá; o jogador punha sobre a
mesa os cinco naipes; o quinto era de círculos azuis. E o rapaz que assava
milho esfregava as mãos, com frio.
Quando cheguei à aldeia, entardecia.
Conversei com o serrador de toras, que estava à porta ,do povoado, e perguntei
por pouso. Recomendou-me uma estalagem de uma família cega e advertiu-me de que
devia levar algum candeeiro.
“Eles não usam luz e eu acho mesmo que,
sendo cegos de nascença e sempre vivendo aqui, onde as pessoas são naturalmente
reservadas, nunca se deram conta de que é preciso iluminar a noite para os
outros. Por isso leve este castiçal e esta vela de sebo."
Na manhã seguinte o jogador de naipes
indicou-me o caminho, sinuoso, esguio, que levava à estrada
principal, e que, em certos trechos, eu devia percorrer engatinhando, porque,
do contrário, eu o perderia.”
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