Rodolpho Motta Lima, Direto da Redação
“Os que me conhecem bem sabem que não sou
muito condescendente com a espécie a que pertenço. Para mim, o ser humano
ainda está bem distante de atingir a um estágio que efetivamente o distinga, no
que realmente interessa, dos chamados seres irracionais. Penso que,
a despeito de todas as conquistas tecnológicas e materiais, ainda nos
situamos em uma espécie de Idade das Cavernas. A inveja, a perfídia, a calúnia,
a traição, a violência, o egoísmo, o preconceito nos mínimos atos de cada dia,
os genocídios que se perpetram de forma permanente, as
guerras sem sentido, enfim, todos os repetidos atos de
barbárie cometidos diuturnamente no planeta não me permitem uma
visão otimista, mas a constatação de que, mudando-se os tempos, os cenários e
os atores, o enredo continua o mesmo.
O otimismo, admito, pode ser, em muitos casos, um
componente propulsor, um móvel que traz consigo o entusiasmo para novas
conquistas e a esperança de que tudo venha a melhorar. Ele é importante em
alguns momentos, mas será sempre uma atitude romântica, dissociada do real. As
verdadeiras mudanças, se vierem – e cada vez acho mais complicado isso –
terão que vir do juízo crítico, da denúncia, do comprometimento com a luta
pelas causas comuns a todos os homens, que envolvem a superação das injustiças
e desigualdades.
Esse quase desabafo vem a propósito de tema muito
debatido, mas que nunca é demais repisar, somando mais uma voz à de quantos
ainda têm a capacidade de verdadeiramente revoltar-se. Quando leio um
depoimento como o da cineasta Lúcia Murat que, jovem ainda, no aceso dos seus
vinte e poucos anos, por buscar um mundo mais justo, teve a sua
vida marcada pela vilania de outros seres ditos “humanos”, é difícil ficar
eufórico com o apregoado desenvolvimento ou progresso da Humanidade.
Procure ler na íntegra o que ela narra, episódios
que passam pela ação efetiva de sádicos animalizados, entre eles militares de
alta patente e médicos, que ela claramente nomeia. Procure ler sobre os
espancamentos que sofreu, sobre os choques no pau de arara que envolviam uma
“viagem” pelos seios, pela vagina, pela boca. Procure conhecer a
moderníssima técnica de interrogatório que passava pelo “passeio” de baratas
pelo corpo, introduzidas na vagina. Procure saber a verdade.
Leia o depoimento da cineasta, não esquecendo que
tudo isso se fazia na mais absoluta clandestinidade, em porões da ditadura, com
pessoas que, oficialmente, não estavam presas, porque essa era uma lei da
repressão, para permitir a prática das torturas sem contestação, além dos
convenientes “desaparecimentos”.
Quando leio os argumentos dos que defendem a
validade desses métodos irracionais, confesso a dificuldade de aceitar
que a minha espécie tenha chegado à tão falada civilização... Nada
justifica a tortura. Nada. O torturador está abaixo do mais irracional dos
animais, até porque não se conhece qualquer animal que torture membros da sua
espécie, ou mesmo de outra. Os animais irracionais disputam território,
disputam comida e matam por isso, mas não torturam. A tortura se situa em um
grau inferior ao da irracionalidade.
No caso em questão, que é emblemático, submeteu-se
uma jovem com seus ideais – e por causa de seus ideais – à saga de pessoas
sórdidas, sádicas, que cobrem de indignidade e de vergonha aqueles a que serviam.
Todos no mesmo saco. E não tem desculpa o martírio, com choques elétricos
e sevícias de todo tipo, imposto a uma pessoa que, pelo idealismo,
acreditava poder mudar um mundo de injustiças. É inaceitável.
A Comissão da Verdade foi criada justamente porque o
inaceitável não pode ter prescrição. Muitos desses monstros estão aí , à
solta, ainda se justificando. São animais em circulação. Não
podem ser nivelados aos que se opuseram à ditadura, mesmo aos que, por força da
luta, praticaram a violência armada, mas não a tortura. Guerrilheiros e
componentes de movimentos clandestinos contra o poder arbitrário sempre
existiram, mas têm sido, historicamente, diferenciados dos algozes que
combatem. Não é por outra razão que Che Guevara é um ícone planetário, estampado
como exemplo em todos os cantos do mundo, enquanto do seu assassino
ninguém conhece o nome.
Os torturadores, com ou sem uniforme, pertencem à
categoria dos seres abjetos que fazem, pela extrema maldade, um mundo pior. E
se indivíduos desse quilate ainda estão soltos por aí, em circulação, têm que
ser punidos. Não há, não pode haver, anistia para a barbárie, muito menos
a partir de uma lei que, todos sabemos, ainda foi votada em tempos de
ditadura.
Era Tristão de Athaide, se não me engano, que
costumava usar a metáfora de que os jovens são incendiários e que, quando
ingressam na idade madura, viram bombeiros. Pode ser. Minha vivência me permite
admitir que isso é verdade para muitos, mas não para todos. De qualquer
forma, a Humanidade tem tido necessidade desses incêndios juvenis que a
fazem, de tempos em tempos, refletir sobre os seus caminhos. Que o diga a
Primavera Árabe, um exemplo bem próximo. A então jovem Lucia Murat
– como tantos outros jovens que lutaram contra a ditadura – representava
os metafóricos incendiários que atuavam nos anos 60/70, com o fogo das ideias
por um mundo melhor.
Felizmente, apesar de tudo, Lúcia Murat ainda hoje
mostra a incendiária coragem dos que não se deixaram vencer , ainda que
coexistindo com a covardia dos que fizeram, a ainda fazem, a apologia da
indignidade, sob a confortável complacência dos nem sempre inocentes bombeiros
de plantão.’
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