Urariano Mota, Direto da Redação
“Esta semana,
tive a honra de participar do Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana. Ali,
na mesa onde se encontravam o escritor João Silvério Trevisan e a ilustre
mediadora Guiomar de Grammont, o tema da nossa conversa foi Escritor em ação:
viver e escrever. Divulgo a seguir a fala que improvisei por escrito para esse
encontro.
Entendo “Viver e escrever”
como a vida que se reflete na literatura. Ou de modo mais preciso: como a
minha própria vida se reflete no que escrevo.
Antes, um esclarecimento, que
devo fazer misturado a um pedido de desculpa. Quando digo “falar da vida
que se reflete no que escrevo”, isso não é um atestado de narciso, de vaidade
ridícula, de supor a minha vida digna da literatura. Não, o meu cotidiano é
banal, assim como a banalidade imensa que cerca todas as nossas vidas. Eu nunca
fui à lua, não conheço Estocolmo, não sou filho de generais, de traficantes,
nem descendo de ladrões riquíssimos ou de famílias
quatrocentonas, nessa ordem. Aliás, na minha família a genealogia se perde, na medida em que não identifico sequer os meus avós. Por esse caminho de biografia magnífica, a minha vida não daria um romance, naquele sentido que o povo muitas vezes fala, “a minha vida daria uma novela”.
Como poderia falar de uma
vida que não tem ação de rilhar os dentes, nem acontecimentos extraordinários
nem amores glamorosos? A minha vida não daria um best-seller. Por isso,
corrijo: best-seller, não, mas a minha vida, assim como a de toda gente, é
digna da literatura. Dependendo do que se fizer do banal, da limonada dos
limões recebidos, a vida de qualquer pessoa é digna da literatura. Ou melhor
dizendo, a boa literatura é que é digna da vida de toda a
gente.
De passagem, esclareço o
método particular de quem escreve literatura. O escritor de ficção, em vez de
narrar ideias gerais, narra pessoas, personagens particulares. É da natureza do
nosso gênero, é a nossa forma de trabalhar. Ainda que estejamos escrevendo
sobre as coisas mais abstratas, algo como a Constituição Federal atualizada,
ainda assim o escritor, o que tem gênese e característica da literatura, falará
da Constituição Federal conforme a biografia sentida da própria vida. É como um
louco ou doente sem remédio. Em muitos significados, ele é um funcionário
permanente. O escritor me lembra um bancário que não conseguia sair do banco. Ia
pra casa, o banco o acompanhava. Ia dormir, lá estava o banco. Ia pro
bar, e quando no calor da cerveja se discutia sobre a estratégia da França com
a Linha Maginot depois da 1ª. Guerra Mundial, o bancário concluía: “Entendo, eu
também faço isso. Eu pego os livros de relatórios e empilho na minha frente,
pra ninguém me perturbar. Essa Maginot é como lá no banco”.
Não é que o escritor seja um monstro
biográfico, que possua um misterioso talento onde não cresçam e frutifiquem
ideias. Pelo contrário, não se conhece um só bom autor que não possua uma
concepção do mundo e dos seus desconcertos. Mas é que nele, no escritor, as
ideias sofrem uma interpretação particular, que se mostram no que ele escreve. Nele
não há lugar para a sobrevivência da tese, que é do ofício de todo ensaio
científico ou acadêmico. Na literatura, os personagens não são bonecos de
ideias gerais. São gente, de cara e dente, onde as ideias se batem, se
violentam e mantêm o conflito. Como na vida fora da escrita.
Nos livros, falo do que vi em minha
juventude, tão perto de mim, como eu gostaria de crer. Neles falo da repressão
da ditadura, de pessoas heroicas, covardes e loucas, ou em profundo desespero,
que eu vi. Falo da minha infância em um subúrbio periférico do Recife, que tem
o nome de Água Fria, que não se pronuncia em boa conversa, porque seria o mesmo
que falar um palavrão. O melhor de mim está quando volto os olhos para esse
mundo sem nome, de pessoas que desaparecem sem nome, cujo sepultamento é apenas
um alternativa precária da carniça para os abutres. É para esse imortal
escárnio que me volto. Essa gente, gentinha gentalha da minha genética é que me
sustenta. Antes, durante suas vidas e depois.
A literatura é a terra da democracia. Ela
permite a um filho do povo escrever e por isso ser recebido com tapete vermelho
em qualquer palácio. E a honra será dos palácios. Essa democracia da
literatura, esta literatura que me permitiu ser menos insignificante, é a minha
terra e o meu destino. Eu não sei atirar, esmurrar, e assim não posso combater
e matar a injustiça com as mãos cheias de bombas, balas e mísseis. Como não
posso, escrevo.”
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