“Quem trabalha como assessor de um
executivo, de uma autoridade, seja pública, seja privada, em algum momento,
cedo ou tarde, terá a sensação de ser mais inteligente do que o chefe. Não raro
este sentimento é sufocado pela ideia um tanto lógica de que se o assessor
fosse de fato mais inteligente, por certo o assessor seria chefe, e o chefe
seria o assessor. E estamos falados.
E assim o subalterno se recolhe à sua
sombra de insignificância e legitima o chefe em seu pedestal. Mesmo quando o
assessor seja uma espécie de braço-direito, daqueles que não descuidam de seu
assessorado, escrevendo seus discursos, suas palestras, falando por ele nas
entrevistas, dizendo-lhe como deve se portar, o que propor, que negócio fechar,
que hora entrar, que hora sair de uma situação, daqueles que entregam o parecer
finalizado, que levam o despacho pronto para colher assinatura no rodapé do
imbróglio mais impermeável. Ainda assim, pela lógica da disposição das coisas,
pelas posições no organograma, pelo status do cargo, pelo salário que recebe, o
assessor, mesmo percebendo que sua lucidez possa ser maior do que a do
assessorado, é levado a crer que alguma coisa do chefe (o músculo de tomar
decisão, o tirocínio talvez) seja mesmo superior.
Mas, convenhamos. Como não poderia Nicolau
Maquiavel ter a sensação de ser mais inteligente do que Lourenço de Médici. Como
não poderia José Bonifácio de Andrada e Silva considerar-se mais inteligente do
que D. Pedro de Alcântara? Como não poderia Galileu Galilei sentir-se mais
inteligente do que o grão-duque da Toscana? Como poderia Carlos Drummond de
Andrade não sentir-se mais inteligente do que o Ministro Gustavo Capanema?
Os exemplos dariam para confeccionar um
volume portentoso, do tamanho de uma lista telefônica de uma grande cidade, no
tempo em que listas de telefones ainda havia.
De fato não é rara a situação em que o
assessor é realmente mais turbinado de arranjos neurais do que o superior
hierárquico. A questão que fica a nos intrigar é por que a situação não é logo
invertida, rebaixando o mais estúpido e elevando o mais inteligente?
É claro que há casos de poder herdado, de
injunções políticas que contrariam a suposta ordem natural das coisas, a ponto
de ninguém estranhar quando se depara com um jabuti num galho de árvore. Mesmo
assim, com algum espaço de tempo, era de se esperar que a inteligência deveria
prevalecer e reverter a situação. Mas isso não acontece corriqueiramente.
Portanto, podemos concluir que o “natural” (aquilo que ocorre com maior
frequência no mundo dos fenômenos) é mesmo o mais inteligente estar a serviço
do mais estúpido.
Podemos, com certa razoabilidade, estender
essa noção para além das relações de assessor e assessorado. Na vida social do
Homo sapiens, a inteligência é apropriada irremediavelmente pela estupidez, em
todo tempo e lugar, em todas as esferas e dimensões, de forma que a estupidez
circula com desenvoltura e arrogância, assessorada servilmente pela
inteligência.
O que é lamentável em tudo isso é que a
inteligência é convidada apenas para desenvolver os meios, a logística do
projeto, as táticas operacionais, enquanto os objetivos são determinados mesmo
é pela estupidez. A inteligência é um insumo usado para alcançar objetivos
estúpidos.
Alguns exemplos de casos em que a estupidez
se apropria da inteligência a para chegar a resultados grandiosamente danosos.
Quando, há 105 anos, foi lançado o Ford T
nos Estados Unidos, conhecido no Brasil como Ford de Bigode, o primeiro carro
user-friendly (facilmente dirigido), consumindo combustível fóssil, muita
tecnologia nova foi incorporada, muita inteligência foi mobilizada para levar
avante tão auspicioso feito. Em um século de automóvel, surgiu uma nova
economia, um novo estilo de vida, uma nova razão de viver. Novas e poderosas
companhias multinacionais perfuraram o planeta de canto a canto numa busca
frenética pelo caldo preto e pré-histórico, para dar propulsão aos bólidos cada
vez mais desejados, populares e irrestritos. Um verdadeiro sucesso de crítica e
público.
Com o automóvel puxando a economia, o mundo
experimentou uma riqueza sem precedentes, cujo volume e velocidade gananciosos
de tempo algum ousaram sonhar. Surgiram da noite para o dia magnatas tão
portentosos, cuja riqueza pessoal não seria gasta nem se pudessem levá-la
consigo por toda a eternidade. Corporações gigantescas e poderosas afloraram
pelo mundo na esteira desse progresso vertiginoso, de tal sorte que muitas
empresas, pela primeira vez na história, tornaram-se mais influentes e
poderosas do que as cidades-estados do medievo ou dos atuais países soberanos.
Muita inteligência, repita-se, foi
mobilizada para que o automóvel dominasse a cena e ocupasse a paisagem da
Terra, nestes cento e poucos anos. Esse domínio foi tamanho que se hoje
chegasse por aqui um extraterrestre pela primeira vez, anotaria facilmente em
sua carta de Pero Vaz de Caminha que o automóvel é o animal dominante do
planeta, aquele que está no topo cadeia alimentar.
Mas não resta dúvida de que esse tempo todo
a inteligência esteve no cabresto da estupidez, na execução de seus objetivos
mais sórdidos e autodestrutivos. Com a queima inveterada do combustível fóssil,
nossa bolha de sobrevivência, mais conhecida como camada de ozônio, foi puída e
rasgada a ponto de quase inviabilizar a vida do homo sapiens no planeta, sem
ter dado tempo da espécie se preparar para uma possível migração. Sem dar tempo
sequer de descobrir um outro planeta azul envolvido igualmente por uma célula
de sobrevivência, para onde o animal sinistro pudesse levar sua inteligência
puxada pelo cabresto da estupidez.
O Painel do Clima da Organização das Nações
Unidas atesta que nestes 100 anos o planeta aqueceu numa velocidade espantosa:
num ciclo geológico anterior, sem a presença do homem e suas máquinas
tresloucadas, o aquecimento similar teria demorado sete mil anos para
transcorrer.
Outro exemplo: A estupidez mobilizou um
volume formidável de inteligência para converter o bioma do cerrado em estrume
econômico. Em contrapartida ao aumento da produção de alimentos, propiciou o
surgimento de desertos, o descontrole do clima, o aparecimento de pragas
resistentes cujo controle requer cada vez mais venenos de efeitos paralelos
potencialmente letais. E pode-se observar que a estupidez segue firme no controle
da situação. Pois não há nenhum pesquisador que se saiba, procurando soluções
para recompor o bioma do cerrado. Mas há vários grupos buscando encontrar
cultivares que possam resistir e continuar produzindo num ambiente alterado e
hostil.
Esquecendo-se de que nós, filhos da
Natureza, não podemos prescindir de um ambiente salubre e ameno e que de nada
valerão as cultivares resistentes, se o próprio homem será deletado pelo
perrengue ambiental que ele mesmo provocou.”
Comentários