“Juliet chegou da Europa com o peso que
todos esperavam dela: ínfima culpa sobre os ombros; o seu belo corpo de volta. Porque,
quando Juliet espalhou a notícia que viajaria pra fora do país, a fim de fazer
a trajetória clássica para Santiago de Compostela, não foram poucos os que
comentaram “putz, a coitadinha vai pirar”.
Ocorre que desde o terrível acidente,
Juliet nunca mais se restabelecera. Não ao ponto de fazer o povo urinar rir ao
encenar umas imitações hilárias, como aquela da Madre Teresa pervertida e
bêbada, uma herética (e diurética) versão fake muito requisitada pela parentada
nas confraternizações de final de ano.
Ora, sublimação tinha limite. Não via mais
graça em muitas coisas, inclusive em si mesma. Não podia evitar a tristeza numa
data tão cruel quanto o Natal, por exemplo. Fazia parte do luto “ad eternum”
previsto pelo batalhão de psicólogos e pelo sensato Juquinha, único espírita
com pedigree confiável naquele clã de vários crentes e um único descrente:
Teseu, o primo ateu.
Em matéria de preconceito religioso, todos
eram craques. Bastava o Teseu chegar numa rodinha, o povo desenrodilhava,
mudava de assunto, incomodava-se, arrumava desculpa pra ir buscar uma cerveja
no freezer, ajudar a temperar o peru, tirar uma água do joelho. Olhando de
longe, até que a cena era engraçada: tamanha a repulsa, ao andar pelo salão,
Teseu parecia um tísico a repelir os parentes por sua assumida incredulidade.
Mas o assunto em destaque não é o ateísmo
do primo Teseu, nem a falta de fair-play ecumênico das pessoas. Falemos mais de
Juliet, a protagonista, pois, ao falarmos demasiadamente de nós mesmos, ou se
cria uma ojeriza danada nos ouvintes (neste caso, leitores), ou se gasta saliva
(e tinta) em demasia com irrelevâncias que nem mesmo a gente suporta.
Os mais receosos — aqueles que julgavam
amar a jovem Juliet num patamar diferenciado, acima da média das afeições —
tinham medo que ela se ferisse ou, quem sabe até, se matasse durante a caminhada
prevista para trinta dias desde Saint-Jean na França.
Eu não. Eu sabia que Juliet não se mataria.
Há três anos ocorrera o fatídico atropelamento, ocasião em que errara a troca
de marchas no câmbio da picape. Foi assim, eu suponho: entrou a terceira
marcha, ao invés da marcha ré; então o carro saltou para frente, ocasionando o
choque fatal dentro da garagem.
Juliet, que só queria sair uns instantes
para fazer umas compras no mercadinho do bairro, acabou dirigindo por um
lodaçal malquisto, um enredo cruel daqueles em que se implora seja apenas um
pesadelo para dele se desapegar pela manhã.
Não. Quem acabou levando uma ré na vida não
foi o carro teimoso, mas, Juliet, os parentes de Juliet, os amigos de Juliet, e
o ex-marido de Juliet — aquele mesmo piadista que repetia à exaustão que mulher
no volante era um perigo constante. Sempre que escreve certo pelas chamadas
linhas tortas, Deus não está brincando, não, absolutamente, não.
E eu também não. Eu seguia acelerado,
sempre em frente, descrendo cada vez mais no palpável e no impalpável. Então eu
danava a escrever compulsivamente, a deitar os dedos no teclado e parir textos
inglórios, a maior parte deles exibindo uma melancolia pegajosa que a tantos
incomodava, tamanha a crudeza, a crueldade, a negligência proposital de
misericórdia.
Eu não. Se era para suportar tanta
humanidade, eu estava mesmo muito imbuído em prosseguir, olhar para frente,
afetar-me minimamente pelo passado, desgarrar-me daquele gosto de ranço que os
dramas vivenciais e a própria morte deixavam na boca da gente.
Então, eu desandava em escrever uns textos
meio tristes, meio verdadeiros, meio inventados, meio autoajuda, meio rebeldes,
meio vazios, e quase nunca hilários como o esquete em que a ex-atriz de teatro
— a meiga Juliet — interpretava uma freira bêbada a xingar puta-que-o-pariu só
porque tinha espetado um dos dedos com uma agulha de tricô. Juliet, antes de
engatar uma tragédia, era comédia demais. A gente rachava de rir.
Certa vez, uma cunhada (sempre os parentes
e agregados a chatearem a gente) disse-me, em tom inquisitório, que aqueles
filmes do sueco Ingmar Bergman estavam me deixando mais amargo que o fel. Ela
supunha que os meus textos salobros proviessem da interferência direta e
abissal das tramas existencialistas de Bergman, que eu adorava tanto quanto —
pasmem — fazer churrasco praquela cambada de parentes nas tardes de sábado. A
partir de então, vacilei, inaugurando uma fase de textos bem ao estilo
besteirol, que tanto bem fazia às pessoas, assim como o uísque, a picanha, o
carnaval, o futebol e a religião.
Não. Eu não. Paremos por aqui. Que este
texto nada mais é que um simples texto, e não uma sessão de psicoterapia, muito
menos, autobiografia; antes — posso lhes assegurar — se trata de uma enorme
alegoria. Não queiram saber mais de mim. Eu sou apenas um homem simples
tentando ser eu mesmo. Eu sou apenas um homem comum tentando ser livre. Voltemos
à jovem, porém, grisalha Juliet, a estrela desta estória.
Quando o pai soube que Juliet embarcaria
naquela peregrinação esotérica, sentiu uma coisa ruim por dentro, um aperto no
peito, um sopro, um calafrio, uma azia imediata, e choramingou feito criança ao
prever outra tragédia, como sói ocorre a todos nós: sempre se espera pelo pior,
tão logo o mais ínfimo empecilho se nos apresente pelo caminho. Coisas do coitadismo,
do desespero, da vocação humana para o dramalhão.
No caso de Juliet, a bela e triste
andarilha, até que o pior adveio mesmo, mas, não da forma prevista pelos
palpiteiros-urubus: uma depressão profunda regada a conhaque mesclado com
barbitúricos; ou um salto desesperado no vazio de um despenhadeiro pedregoso,
dentre tantos despenhadeiros pedregosos que aquele e outros trajetos do mundo
possuem.
Não. Ela não. Juliet fizera secretamente o
voto de se manter em pé, lúcida, sã, a fim de que tivesse tempo suficiente
para, senão aceitar, entender minimamente os dilemas do viver, do morrer, do
fazer morrer por obra do destino, do sofrer, do crer e do não crer no que se
via e no que não se via, nem sequer se imaginava. Não conseguiu.
Ela não. Ela não se apaixonou por nenhum
peregrino suicida em potencial, nenhum andador de nacionalidade desconhecida
igualmente abilolado por consequência de uma qualquer tragédia cotidiana destas
que nos assolam a todo momento, em qualquer pedaço de terra do planeta.
Não. Ela não repetiu os ditames socráticos
de que só sabia que nada sabia. Não. Juliet não era tola. Juliet sabia algumas
coisas, sim. Juliet aprendera muito com o sofrimento nos últimos tempos, embora
preferisse ter passado pelo aprendizado sob a batuta da leitura, da pesquisa,
do estudo, do mestrado, do doutorado, do pós-doutorado, de todas outras formas
quaisquer de compreensão das coisas. Se dependesse dela, abdicava de todo
sofrimento, como fizera São Francisco de Assis — antes de ser santo — à herança
dos pais.
Durante um mês, Juliet perseguiu respostas
pelos mais de seiscentos quilômetros de caminhada. Defronte à catedral de
Santiago de Compostela, chorava menos por causa dos tornozelos inchados e das
chagas nos pés, do que pelo vazio existencial que tomara conta da sua jornada. Depois
de tantas semanas a comer macarrão, pão caseiro e sopa, recuperou o antigo
peso, escapuliu da anorexia, dividiu com outras mulheres histórias dramáticas e
espaço nos mais modestos albergues. A primeira impressão que Juliet teve logo
que deixou a estrada foi o verso cantado por Frejat, da banda Barão Vermelho:
“Todo mundo é parecido quando sente dor”.
Então, se depilou, passou batom nos lábios
e embarcou no primeiro trem rumo a Paris. Subiu na Torre Eiffel. Tirou umas
fotos lindas. Ficou extasiada com a cidade da luz, porquanto soubesse que nada
sabia. Sentia-se cada vez mais parecida com todo mundo. Até que voltou a sorrir.”
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