‘Uma provocação sempre leva a contestações. Sobretudo a réplicas advindas de mentes ditas racionais, lúcidas. Próprias de gestores da sensatez, embebida em licores da prudência, cautela e do comedimento. Nada mais covarde, convenhamos, ensandecer de desejo, fissuras afogueadas que nos deixam o corpo em chagas, gemendo de querências. Isso é puro descerebramento. Catarata emocional. Inconsequência explícita, flagrada no auge do alcoolismo e já aos tropeços, nos caminhos do ziguezague.
Para muita gente paixão é pobreza de espírito. Praga. Doença mais contagiosa que conjuntivite. Deficiência de caráter, falta de etiqueta social, seguida por um sem número de rótulos. Desvarios de ordem emotiva definitivamente não combinam com ganância, ambição, sede implacável por construir impérios em série. Demandas por lucros colossais. A ótica negocial e visão argentária de mundo abominam quaisquer deslizes da mente que a levem a uma deplorável inocência, rodeada de candura entorpecida.
De acordo com as regras do bem viver e se projetar socialmente é preciso ganhar muito, dominar tudo e todos, ter o controle dos que o rodeiam nas mãos. A certeza de sucesso crescente. Os carros mais invejados. Vestuário de procedência internacional, cheirando às melhores e endeusadas grifes. Um luxo, as benesses do capitalismo. A religião dos magnatas da bolsa de valores, dos megaempresários reproduz o lema: o dinheiro é meu pastor. Portanto, seguem benevolentes os apelos das verdinhas, com a mesma passividade e doce aquiescência das ovelhas.
Grande parte da sociedade considera dinheiro e felicidade como gêmeos univitelinos. Elites que farejam o lucro nas mínimas especulações apresentam algumas traços de personalidade. A firmeza ao segurar as rédeas de um cavalo bravo. Agilidade de um gamer ao manejar consoles financeiros. A versatilidade e instinto de autoproteção do Bicho-folha, que, por artimanhas da genética, consegue imitá-las perfeitamente e assim burlar também a sanha de predadores, na selva da concorrência.
Mas voltemos às delícias da paixão. Referimo-nos àquelas que sempre deixam rastros de febre alta. Respiração sôfrega e ânsia irrefreável de se fundir com o outro. Paixão, vamos combinar, não se afina com a fugacidade dos encontros casuais contemporâneos. A hora é do bate-e-pronto. Sexo embalado para viagem. Relações facilmente descartáveis.
A paixão, a princípio, rima com idealismo. Sonhar mais um sonho possível, explodir o coração em imagens fractais. Fazer da infinitude a meta máxima. Torcer ferozmente para que estes dilúvios transbordantes de veias e artérias, como derrames do extremo querer, sejam eternos enquanto durem. Ah, e que durem uma eternidade, por favor.
Entretanto vale uma ressalva — quem aposta
em relações intensas nos dias atuais? Nos beijos sem pressa de beijar. Nos
olhares preguiçosos de piscar. Paixão para muitos se divorcia dos mandamentos
mobiles da nossa mutante rotina.
Mais desafios? Vamos aos verbos, então. Permitir
que venham à tona os selvagens da floresta que nos habitam. Rasgar as roupas
dos entretantos. Incendiar os armários aonde se aquietam as indumentárias das
conjunções adversativas. Abdicar dos poréns.
É fato. Urge condenar os titubeios ao
desterro. Os avatares e personas virtuais ao éter das indefinições. Atirar
teclados e conexões digitais pelas janelas da indignação. Recuperar, por fim, a
carnalidade perdida nos ambientes cíbridos das mídias sociais.
Estamos, é certo, diante de uma revolta
legitima pelo advento de um novo ser humano. Alguém mais epidérmico que renasça
do analógico. Um indivíduo cujos olhos faísquem trovões. Intempéries de leões e
panteras passeando felizes, longe de cativeiros.
Aliás, existir fora da caixa é primordial
nesses tempos de taquicardia e pupilas dilatadas. Quebrar todos os paradigmas
desta era pós-humana. Fazer cócegas no androide no qual estamos prestes a nos
transformar. E dar uma exemplar rasteira nos ciborgues que nos espreitam,
confiantes em sua inabalável supremacia. Paixão animal é filha única da idade
média. Rima com barbáries. Acasala-se aos grunhidos que antecederam a criação
da fala.
Paixão dá um tempo! — clamarão em uníssono
os expurgados do planeta do êxtase. Mas ainda há quem ouse, a despeito das
transparências e inconsistências desta realidade vítrea, abraçar suas paixões
sem disfarces. Cair de boca no instinto, livre de vírgulas e culpas. Ainda há
quem caminhe despreocupado na contramão, sem lenço e sem documento. Quem
constate que mexe qualquer coisa dentro doida.
Talvez essa pessoa seja você. Seja eu.
Soltando alegremente todos os bichos. Com um jeito meio Caetano de ser.”
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