Solte suas cobras e lagartos



Graça Taguti, Revista Bula
 
“É isso aí, bicho, diria o Rei, Roberto Carlos, no alto do carro-chefe da MPB há algumas décadas. Polegar pra cima, sempre na crista da onda — como se falava na época da Jovem Guarda. Hoje a gíria “bicho” vem sendo substituída por: “brô, mano, véio, cumpadi” — apelidos que ventilam a ferrenha intimidade do #tamojunto.

O tema desta crônica, avisamos desde já, se imiscuirá mata adentro nas florestas do nosso imaginário.  Trata-se de expedição singular que acompanhará o traçado das próximas linhas, munida apenas de facões, lanternas e espírito bandeirante. Clamamos então pelos selvagens que em nós habitam cobertos apenas pela pureza de seu primitivo instinto.

O território é livre. Alertamos para o fato de que a caça está terminantemente proibida nestas redondezas, cujas cercas protetoras constituem-se de frases e parágrafos cuidadosamente trançados. Letras dando suas mãos firmes — e estendendo sua sonoridade — às demais que as sucedem, em explícita cumplicidade formadora de palavras.

Se a selva nos atrai, partimos sem hesitações para desvendá-la, montados nos simbolismos de metáforas e polissemias.

Antes de tudo, no início desta jornada, advertimos: pare de engolir sapos. Livre-se de cobras e lagartos que o infestam, lançando-os contra circunstâncias adversas, que tantas vezes obstruem seu caminho. Há que ser guerreiro. Ostentar bravura no coração.  Perseguir  destemores virgens, protegido por vigorosas quedas d’agua paridas em série pela mãe natureza.

Engolir sapos provoca irremediáveis inchaços no seu desânimo.  Fomenta desistências e submissões até diante de inofensivas e invisíveis sombras.
Bateu medo? Orquestre macaquices para espantá-lo. Sente-se acossado? Vire onça e ataque. Deixe sua marca e transforme-se em pantera, como no filme protagonizado, por Nastassja Kinski, em 1982.

Fulano é uma cobra, sicrano urde tramoias e crocodilagens, beltrano finge-se de bobo vestindo a capa dissimulada de uma astuta raposa. O colega da mesa ao lado o reverencia dia sim, dia não com abraços de urso — dos quais você tenta se defender como pode.

A vida é uma selva. Mas note, por favor, não queremos despejar nesta aventura qualquer afirmação pessimista. Somente lentes especiais, através de que ajustaremos o foco dirigido aos closes do cotidiano.

Que cachorrada seu superior fez com você, hein?

“Não passa de um rato” adverte, insuflando novas intrigas, outro funcionário de longa data, insistindo na máxima “antiguidade é posto” — uma vez que a promoção tarda e boceja.

Na obra “A Revolução dos Bichos”, o libertário George Orwell utiliza metáforas por meio das quais revela uma aversão a toda espécie de autoritarismo, seja ele familiar, comunitário, estatal, capitalista ou comunista. Livro de indiscutível atualidade, Orwell argumenta que apesar dos nossos esforços ainda somos achacados por indivíduos que insistem em dominar, aquém da ética e além do poder.

Porém nem tudo está perdido.  O autor nos apresenta a esperança de que algum dia conseguiremos enxergar as nítidas diferenças entre porcos e homens.

Em outro título, “A Águia e a Galinha”, Leonardo Boff nos instiga a perceber como vivemos de cabeça baixa, focando minúsculos territórios delimitados por nossa parca  condição de galinhas.  Porém, a maioridade das águias, que também nos integra, aguarda nosso seminal posicionamento visando realizações de alta abrangência.

Aquele ali não passa de um camaleão, acusamos certas criaturas de dançarem conforme a música das conveniências políticas.

Lembramo-nos ainda dos que esbanjam preconceitos à sua volta fedendo, por conseguinte, a gambás discriminatórios — que despejam sua conturbada sanha moralista sobre mulheres alcunhadas de piranhas.

Paca, tatu, cotia não. Brincadeiras de infância. Palavra de ordem dos tempos em que os portugueses aportaram por estas bandas e tiveram de se adaptar à gastronomia indígena, com suas estranhas iguarias tropicais.

Reza a lenda que pacas e tatus eram pratos muito apreciados, mas as cotias não iam à mesa por conta das crendices das índias: se comessem a carne daquele roedor, teriam filhos mirrados e fracos.

Referências à rica fauna do planeta multiplicam-se e desfilam ante nossos olhos na cultura dos povos, seus mitos e manifestações.

Possuiremos a paciência de uma tartaruga para destrinchá-las com vagar?  A memória dos elefantes que irá preservá-las, oferecendo ricos registros históricos e lendas às futuras gerações? Exibiremos a coragem dos leões para empreender a colossal tarefa desenhada à nossa frente?

Gostaríamos de pescar algumas respostas. Lançamos então estas iscas, dirigidas aos peixes famintos que seguiram atentos todo o aventureiro percurso deste texto.”

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