“Têm certas coisas nessa vida que são difíceis de aceitar, não?! Por exemplo: se o apêndice para nada serve, senão para inflamar, doer, e fazer morrer os moribundos — assim dizem nossos introspectivos médicos curandeiros — por que então nascemos com ele pregado às tripas? Por que o capeta só entra em corpo de pobre (esta eu ouvi numa rádio e achei ótima)? Por que a morte, embora seja um fenômeno dos mais previsíveis, assim como o nascimento e a ereção matinal (o velho “tesão de urina”, meu chapa), é tão deprimente? Por que a Receita Federal nunca manda cartões de felicitação aos contribuintes nos seus aniversários? Por que o cinismo pode ser ao mesmo tempo engraçado e irritante? Por que os leitores preferem os textos hilários ao invés dos filosóficos? Por que aqueles cheques que eu depositei voltaram, meu Deus do Céu? Por que este poço de dúvidas também não tem fundo?
O que não entra na cabeça de ninguém é por que motivo um adolescente de 13 anos teria matado a família inteira e depois suicidado, no pequeno bairro da Zumbilândia, em São Paulo. A polêmica não sai da TV, não desprega das resenhas por onde quer se ande. A violência é um despertáculo ao qual não nos acostumamos, senão nos ambientes de guerra, onde o vale-tudo da carnificina se dá em zonas neutras, abençoadas pela justiça humana, onde se pode trucidar o inimigo, e ainda por cima, ganhar uma medalha, uma condecoração por ato de bravura e, com muita sorte, até uma estátua num jardim, a servir de latrina para os passarinhos. Estes bichos, sim, têm sorte: nasceram livres.
O que houve com aquele guri, se é que ele
foi mesmo o protagonista da chacina doméstica: surto psicótico? As drogas
distorcendo o juízo? Vingança? Justiça com as próprias mãos? Armação da
polícia? Aliás, falando em armação, alguém por aí sabe do ajudante de pedreiro
Amarildo? Alguém aí já foi ao Céu e voltou? Alguém aí tem uma nota de cem reais
pra me arrumar? Alguém aí me explica por que imortalizar tantos escritores
medíocres em Academias de Letras? Alguém aí poderia, por caridade, coçar as
minhas costas?
A sociedade, no geral, é burra, hipócrita,
medrosa e, mesmo incompetente nas suas ações, exige respostas plausíveis das
“autoridades competentes”. Com o apoio guloso e circense da mídia, cria-se uma
expectativa crescente, principalmente no rebanho da audiência que permite se
submeter ao flagelo diuturno dos noticiários televisivos que, quando não
respingam sangue no tapete da sala, exalam uma catinga de enxofre mais
asfixiante que o gás lacrimogêneo que a polícia anda atirando nas ruas nos
últimos dias.
Mesmo sendo exemplares da estupidez ao
longo da história, homens e mulheres com agressividade domesticada sentem-se
deveras condoídos, quando notícias estarrecedoras interrompem os mastigares
noturnos, más novas anunciadas num palavreado polido por apresentadores
almofadinhas. Com tanta notícia ruim na telinha, a Patrícia Poeta está mais
para Patrícia Cronista. Vai ser bonita assim lá em casa, minha filha…
Num tempo em que noticiários
sensacionalistas fazem tanto sucesso na TV, incrementando a audiência, eu
decidi poupar a minha bile desta horrenda escrotização diária. Evito ligar o
televisor. Pulo também as páginas policiais dos jornais impressos da minha
cidade. Já não desacelero o meu carro para apreciar, estarrecido, curioso,
mórbido, um corpo qualquer deitado no asfalto quente, que bem poderia ser um
amigo, um inimigo, o cara que me passou os cheques sem fundo, quiçá, uma linda
ex-namorada destroçada pelo trânsito insano da capital.
Veja bem, eu não faço ideia do que tenha
ocorrido na cena daquele crime hediondo na Zumbilândia. Aliás, não me recordo
nem do que comi no almoço hoje, quem dirá, do que queria ser quando crescesse. Os
debates a respeito de quem matou quem e por que motivo não me interessam. Só
sei que os índices de audiência não param de subir, e isto é maravilhoso para
os anunciantes do comércio varejista e para as emissoras de TV.
Por fim, eu lhes digo, ao apurar a minha
resignação: quando eu morrer me enterrem na lapinha, ou onde vocês bem
entenderem; pode ser com choro ou sem choro, com vela ou sem vela, com ou sem a
tal fita amarela gravada com o nome dela. Pra mim tanto faz. Gente morta não
tem o direito de exigir porcaria nenhuma, muito menos, reclamar do paletó
apertado, do algodão entuchado nas narinas, do ataúde barato, ou de ficar com o
controle remoto nas mãos. O destino: adeus pertences. Rá-rá-rá.”
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