O homem vermelho em seu cavalo branco


Ilustração: Angélica Pinheiro

Fernando Portela, fernandoportela.wordpress.com / GGN

O homem vermelho em seu cavalo branco atravessava todo o bairro, duas vezes por dia, de manhã cedinho e no fim da tarde, oferecendo um delicioso produto: leite.

O homem vermelho era vermelho mesmo, parecia que havia saído de uma manhã na praia; diziam que aquela cor da tez se devia a ancestrais holandeses.

Para não fazer pipocar a pele frágil, o homem vermelho vestia um chapelão de abas largas, marrom-claro, até às cinco da tarde. Como usava sempre a mesma roupa, cáqui, calça e camisa da mesma cor, e botinas pretas de soldado, o homem vermelho mais parecia um dèjá-vu: todas as vezes que o víamos, imaginávamos um outro momento da vida, em um outro tempo, há três, quatro anos, porque ele era sempre igual. Isso causava uma certa aflição nas pessoas.

O cavalo branco não era um puro-sangue, longe disso, mas um belo pangaré, imenso, de crinas fartas, alvo como um fantasma, que puxava com vigor a carroça com os galões de leite e o homem vermelho em cima, guiando o veículo com maestria, batendo de porta em porta.

“Leite puro, do peito da vaca!”, gritava o homem vermelho.

Às vezes, faziam fila, com seus litros nas mãos, esperando o líquido branco, quase pastoso de tão gordo, e que desprendia um odor nostálgico de curral.
O homem vermelho sorria para todo mundo, das crianças aos mais idosos, dos deficientes mentais aos cegos. Certa vez, meu primo Antenor, que me acompanhava na fila do leite, estranhou muito uma determinada cena.

“Olha lá”, cutucou-me o meu primo, “o homem vermelho está sorrindo o tempo todo para o cego…”

“E por que ele não iria sorrir, Antenor?”

“Ué… porque não adianta.”

Um dia soubemos que o homem vermelho se candidatara a vereador pelo partido da situação. Ficamos satisfeitos: era uma pessoa que conhecia os problemas do bairro, rua a rua, que ouvia as queixas das pessoas e que, com certeza, possuía uma boa experiência em administração, já que vivia há anos da sua pequena criação de vacas leiteiras em plena cidade e da distribuição do produto. Aquela roupa sempre igual dava a idéia de um homem muito limpo. Mais: era sem dúvida um incansável trabalhador, mourejando de sol a sol – ordenha vaca, enche os tonéis, dá ração, toma banho, sela o cavalo, vende, compra ração, lava os tonéis, recolhe o esterco pra vender…

O homem vermelho foi cumprimentado por todos os moradores do bairro, recebeu centenas de promessas de apoio, e a cada dia se tornava mais risonho, mais confiante.

Veio o pleito e, após a contagem, o homem vermelho descobriu que recebera um voto. Não quis acreditar, pediu recontagem, as pessoas estavam ansiosas (“Como é? Quantos votos?”), até que um dia o homem vermelho chegou em casa com os olhos também vermelhos. Chamou Tina, sua mulher, e disse a Seramir, rapaz de quase 30 anos, filho único, muito desconfiado por causa do choro inédito do pai, que depois o chamaria também.

A portas fechadas, o homem vermelho olhou com firmeza para a mulher e declarou que preferia morrer a se sentir traído, após quarenta anos de casamento.

“Eu, trair você? Mas quem iria olhar pra mim, homem de Deus? Estou tão gorda e sem graça…”

“Eu me refiro à eleição.”

“Que aconteceu?”

“Tive um voto: o meu.”

“O quê? Foi seu nada! Foi o meu. Você deve ter errado o voto. Porque eu votei em você. Eu tenho mais estudo, não erro.”

O homem vermelho não disse mais uma palavra e foi cobrar do filho.
“Pai, eu não votei porque o senhor não iria agüentar a vida de político… Iria ficar longe da gente. Depois iria se envergonhar do curral…” (Mais tarde, o homem vermelho soube que o rapaz tomara um pileque na véspera da eleição e que acordara após as cinco da tarde, quando já se encerrara o pleito.)

O homem vermelho voltou à sua vida de sempre, vendendo o leite, só que não era mais o mesmo. Na roupa, antes sempre limpa e impecável, perceberam que algumas sujeirinhas apareciam com freqüência. O cavalo branco deixou de ser escovado e ter as crinas penteadas. Um dia o viram mancando, até, com a ferradura mal-ajustada. E o leite passou a apresentar uns pontinhos escuros muito suspeitos. “Coliformes fecais”, insistiam as más línguas.

Muita gente se perguntou o que havia acontecido, eu inclusive, e acabamos chegando à conclusão de que o homem vermelho não era tão popular assim; pelo contrário: aquela sensação de dèjá-vu que ele sempre passava o associava a fatos desagradáveis e constrangedores, como se ele tivesse o dom da onisciência e estivesse presente a todos os momentos das nossas vidas.

Mas a explicação fundamental era bem mais simples: ninguém sabia o nome do homem vermelho, e nem se preocupara em perguntar até o dia da eleição. Muita gente chegou em frente à urna, pronta para votar nele, e acabou descobrindo que só o conhecia como “o homem vermelho”.

Eu cheguei a me oferecer para dar-lhe essas explicações todas, mas quando fui procurá-lo senti um certo bafo de cachaça. Hum, era uma coisa que ele jamais fizera antes. A depressão é o mal do século, pensei. Acabei desconversando. Uma pessoa alcoolizada não compreenderia ponderações mais ou menos sofisticadas, apesar de reais, sobre o maior fracasso da sua vida.

No caminho de volta, lembrei-me de que, mais uma vez, não lhe perguntara o nome.”

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