“O senso comum, os livros de auto-ajuda, a
maioria das ciências sociais, como a política e a psicologia, e até mesmo as
religiões sustentam que o bicho humano tem vocação para ser feliz. Talvez seja
essa uma das superstições mais bem disseminadas e sem contestação nos dias de
hoje.
Na verdade é muito cômodo, simpático e
agradável concordar e agir como se todos nós fôssemos dotados do temperamento
de ser feliz. Além de que a crença de que podemos alcançar um estado de
felicidade na vida nos impulsiona a todos e sustenta a grande indústria do mundo,
nos seus aspectos mais vorazes de produção e consumo.
Mas, definitivamente, não somos capazes de
nos apropriar da melhoria que o progresso nos proporciona para desfrutar de um
estado de alma mais feliz. O que o progresso nos fomenta é apenas um estado de
excitação. O que pode até ser viciador. Mas não é propriamente a felicidade a
que todos almejamos. O progresso ocorrido de uma geração para outra não é visto
nem apropriado pelos usuários mais novos como um motivo de contentamento. O
mais comum é que ocorra uma sensação de que a vida poderia ser melhor do que
realmente é. Ou que a melhoria poderia ter sido maior do que a ocorrida.
Peguemos alguns motivos triviais que nos
poderiam fazer felizes. Num país de urbanização retardatária, recentíssima e
atabalhoada como o nosso, é muito comum encontrar pessoas cujos pais viveram no
campo e até mesmo alguns que ocupam posições de destaque social que passaram a
infância na roça e só na idade escolar se mudaram para a cidade.
A vida no campo era de uma precariedade
franciscana. As pessoas moravam em casas insalubres e desconfortáveis, com piso
de chão, sem energia elétrica, sem banheiro, sem água encanada. Sem médicos,
sem remédios, sem escolas, sem estradas. Para falar com alguém ausente era
preciso mandar recados que demoravam a chegar ou chegavam distorcidos, ou não
chegavam nunca. As mulheres buscavam água na fonte para beber. Levavam os
talheres para lavar na bica, passando normalmente por despenhadeiros. Levavam
trouxas de roupa na cabeça para lavar no rio, sujeitas a ataques de mosquitos,
abelhas, répteis peçonhentos, jacarés, sucuris e até onças famintas. Os homens
iam para o roçado, de sol a sol, todos os dias, no trabalho duro e sem fim. Comiam
mal, bebiam água morna de cabaça, sem tratamento. O Banho era de água fria, no
rio, na bica ou de cuia. Tinham que produzir quase tudo o que precisassem. Da
roupa ao remédio, da alimentação ao lazer. Para parte da população, nas regiões
periféricas das cidades, o acesso ao saneamento básico continua precário, e
pertence ao mundo dos sonhos e da utopia.
No entanto, grande parte dessas pessoas já
alcançou um padrão de vida em que elas têm à mão uma gama de produtos e
serviços colossal. Isso há pouco tempo soaria como um milagre. Você apenas
torce uma torneira e jorra água dentro de casa, em vários pontos
pré-estabelecidos, sem alagar o ambiente. Joga as roupas numa centrífuga e em
minutos estarão lavadas e secas. Faz suas necessidades fisiológicas em bacias de
louça e manda os dejetos embora para um reservatório bem longe, que você nem
sabe onde fica, com apenas o aperto de um botão, deixando sua casa sem mau
cheiro. Toma banho de água morna ou um copo de água gelada, na hora que quiser,
sem ter que carregar latas incômodas na cabeça, por ladeiras e grotões. Não
precisa carpir a terá para ter seu alimento ou sua bebida de preferência, na
temperatura que quiser. Não precisa pilar o arroz, nem caçar para ter carne,
nem matar a vaca com as próprias mãos. Não precisa mandar recados tortuosos
para ninguém. Você fala com alguém, como estou falando agora com meu filho e
vendo seu rosto e mostrando o meu. E ele está em Zhu-zhou, do outro lado do
mundo, no interior da China. Tudo isso instantaneamente.
Agora o que é mais incrível! Aposto todas
as minhas fichas que quem desfruta desses benefícios da vida moderna não se
sente nem um triz mais felizardo do que seu ancestral que carregou lata d’água
da cabeça para matar a sede. Que fez cocô no mato, entre mosquitos e porcos. Que
dormiu em cama de taquaras, entre pulgas e barbeiros. Hoje a gente se azucrina
com os políticos desonestos, com a internet que às vezes não nos dá a
instantaneidade total, com o médico que nos deixa esperando na fila, com o
trânsito congestionado, com os amigos do alheio e a polícia impotente, com a
escola deficiente y otras cositas mas.
Não estamos nem aí para as melhorias que
conquistamos. Já as mazelas que nos atingem são percebidas com as piores de
todos os tempos. E nos julgamos pessoas muito infelizes, mas com potencial para
ser feliz um dia. Quando as mazelas forem erradicadas de nossas vidas.”
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