‘Felicidade não tem segredo. Mas só
sente quem está vivo. E não quem finge, como grande parte dos indivíduos.
Oscar Wilde profetizava que “viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das
pessoas apenas existe”. Algumas felicidades são tão compridas que não cabem na
boca. Nem nos sonhos.
Sabe aquele bombom recheado com mousse e
licor, foi abocanhado pela gula. O sorvete de cerejas com nata, escorrendo sem
vergonha casquinha afora, evaporou. O por do sol multicor todo oferecido,
esticando os últimos raios, pra seduzir quem o observava pasmo, foi dormir no
meio de alguma nuvem vestida de edredom.
Já repararam nas músicas sobre felicidade? “Tristeza
não tem fim; felicidade sim.” “A felicidade é como a pluma que o vento vai
levando pelo ar.” “Felicidade foi embora e a saudade no meu peito ainda mora.” É
felicidade que não acaba mais, se multiplicando nas letras da MPB.
A publicidade de um refrigerante todo
esfuziante bota pra cantar em seu slogan e música. “Abra a felicidade, vem
curtir comigo o dia já vem.” Marcas em profusão alardeiam a propriedade com
firma reconhecida deste sentimento que, junto com a paz, é um dos mais
cobiçados nesta vida.
Felicidade é êxtase. Paraíso. Levitação. Ir
embora para Pasárgada e se esquecer de voltar. Mergulhar os pés depois de andar
pela areia quente num abraço de mar, fresco e generoso. Ver o bebê arrotando,
finalmente, depois de tomar com gosto a mamadeira dos deuses.
Reflexão
espinhosa: dá pra ser feliz assim, com a alma nua e crua, andando sem pressa
pelas estradas do acaso, apenas de mãos dadas com tão acalentador sentimento. Você
consegue?
A inspirada escritora Adriana Falcão jura
que “felicidade é um agora quer não tem pressa nenhuma”. Então, para com o
reboliço, fica quieto, sente as vibrações em torno, apenas curtindo esse estado
de nirvana explícito. Será que a ansiedade aguenta? — há controvérsias.
O filósofo Nietzsche atira seus dardos: “A
vantagem de ter péssima memória é divertir-se muitas vezes com as mesmas coisas
boas como se fosse a primeira vez”. Fernando Pessoa revela “Às vezes ouço
passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido”. Por sua
vez, Drummond rasga o verbo e arremata: “Ser feliz sem motivo é a mais
autêntica forma de felicidade”.
Pronto, ferrou. Precisava o Drummond nos
colocar contra a parede das nossas aflições, fixar bem nos nossos olhos e dizer
de um novo modo, conforme a parodia a seguir. Será que você consegue ser feliz
à toa? Dono e proprietário exclusivo daquela felicidade virgem de carências,
satisfeita só por constar nos experientes e folheados dicionários de
lexicógrafos. Tem resposta pra isso, ou não?
Antônio Houaiss, mestre Aurélio, dentre
outros dicionaristas sagazes nunca desistiram de correr atrás, como crianças
caçando borboletas, da semântica dos vocábulos.
O que é mesmo ser feliz, hein? Ir a festas,
bares, baladas, tomar todas, ficar com todas e todos, mexer o corpo até o sol
raiar e o sono apertar. Que noitada, rapaziada. A cabeça mais inchada que a
mitológica hidra, jura se vingar por todas as ressacas a que é submetida várias
vezes durante a semana.
Transar enlouquecidamente é tudo de divino,
selvagem e maravilhoso, vai discordar. E aquela bala hightech, puro ecstasy,
que te ofereceram na semana passada. Tudo blue, Adão e Eva no paraíso, as
visões grávidas de estrelas, cujas tonalidades nunca existiram no espectro
solar. Vai entender.
A felicidade também é se agarrar com uma
“branquinha” enrolar uma “verdinha” em forma de canudo e aspirar à onipotência
de existir sobre todas as criaturas. Quanta inteligência repentina. E o
cheirador fala sobre todos os assuntos, com imensa desenvoltura, como se
tivesse passado dois anos de jejum absoluto, só ruminando bibliotecas direto do
imponente e austero móvel do avô.
Haja sabedoria rodando na barriga,
disputando espaço com as já irritadas alças do cólon intestinal. Felicidade é
uma calça jeans azul e desbotada, berra um jovem idealista lá dos anos 1980. Banho
de cachoeira mineira. Caminhada ecológica sobre feno dourado. Namoro
esparramado de frente pra lua, mais redonda impossível. O primeiro beijo, o
primeiro sutiã a gente nunca esquece. A primeira surra também. Aí costuramos
uma infindável fileira de momentos virginais, feito rosário de novena, em
ocasiões distintas do nosso dia a dia.
Passar no vestibular. Oh yeah. Formar-se
na faculdade, ostentando a beca e o canudo na maior moral. Conhecer paisagens
exóticas, horizontes intocados, aconchegar uma panda contra o peito, imitar
passarinhos pra eles comerem alpiste direto na concha da nossa mão.
Uma criança outro dia contou bem baixinho
pra sua mãe que gostava de ajudar pessoas sem nome, os meninos e meninas,
atulhados de balas e doces, oferecidos na beira dos sinais vermelhos. Guloseimas
que juram tornar mais leve a vida dos motoristas. A mãe ouviu e ficou
preocupada, com o inesperado despojamento do garoto, que fugiu à cartilha dos
ensinamentos paternos e resolveu abrir os afetos para perigosos estranhos. Todos
do lado de fora da sua casa.
Mario Quintana, que sempre soube das
coisas, avisava sem alardear: “O segredo é não correr atrás das borboletas… É
cuidar do jardim para que elas venham até você”. Acontece que a gente não
aguenta né. Não basta admirar a rosa que se expõe irresistível na roseira. É
preciso arrancá-la de lá. O passarinho, verde que nem uma folha será um
periquito? Direto pra gaiola, já. Condenado a enfeitar na varanda nossas pequenas
e esgarçadas alegrias.
Aristóteles sentenciava que “a felicidade é
para quem se basta a si próprio”.
No filme “A Felicidade Não se Compra” de
1946, Frank Capra, James Stewart, Dona Reed, se imiscuem nas mensagens que
permeiam a obra — cada um de nós é importante sobre a terra. Em “As Duas Faces
da Felicidade” (Le Bonheur, 1965) de Agnès Varda, o enredo passeia entre
imagens belíssimas e as contradições inerentes ao próprio sentimento, tantas
vezes dúbio.
Um campo de girassóis explode em nossos
olhos, uma ofuscante sensação se exibe sem culpas nem pudor. Então, dá pra ser
feliz escancaradamente, sem achar que está, nos escuros cantos do coração,
roubando de alguém uma farta porção de felicidade? Se deliciar longamente, em
festas de aniversário, devorando pedaços de bolo com creme, esquecendo-se dos
outros convivas.
Egoísmo incomoda como um calo no sapato. O
bem-estar e as decorrentes fruições atiçam raiva e inveja em muita gente. Porque
riqueza de espírito é algo que não se amealha, nem acumula, como gordas
poupanças e investimentos bancários. A felicidade cresce e se
anuncia dentro do peito, sem pressa e sem ruído.
O que se faz, entretanto, quando o voraz
capitalismo e a publicidade teimam em plantar entre nossos desejos,
inimagináveis e avassaladoras necessidades? A grande conquista é
ter. Tenho, logo sou. Possuo, logo existo — ecoa a máxima nas luxuosas
sociedades.
Uma dúvida: felicidade será irmã gêmea da
alegria. Cordão umbilical da satisfação plena. Coro residual de gargalhada
altissonante? Vai ver que não. Ela pode ser bem quieta. Discreta, mesmo.
Deslocar-se pé ante pé no cotidiano. Deslumbrar-se em silêncio com o
húmus das plantas amanhecidas. Os ovos do bem te vi, guardados com cautela, à
espera de eclodir.
Felicidade pode ser assim também: uma
felicidaaade larga toda a vida, que não cabe na boca, nas mãos. Não se acomoda
nos seios, circunda as manhas do ventre, envolve as promessas delirantes das
inquietas coxas. Sempre inquietas, essas coxas. Ahhh. Quem aguenta?”
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