Urariano Mota, Direto da Redação
“Faz duas
semanas que os jornais não se cansam de informar que Roberto Carlos, Chico
Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Djavan, Erasmo Carlos e Gilberto
Gil criaram um tal de grupo Procure Saber. E nem pensaram, os astros, no
paradoxo do nome dessa estranha associação, cujo objetivo é a exigência de
autorização prévia para os livros que autores e editoras venham a
publicar sobre as suas magníficas vidas. Dos compositores, evidente.
Paula Lavigne, presidenta e
porta-voz do grupo de compositores contra biografias, parece que pouco lê, e se
lê, mal entende de livros e literatura, pois assim falou em seu natural
soft:
“Aqui no Brasil parece
que só existe liberdade de expressão, o direito à privacidade não é
respeitado... Nosso grupo é contra a comercialização de uma biografia não
autorizada. Não é justo que só os biógrafos e seus editores lucrem com isso e
nunca o biografado ou seus herdeiros. Usar o argumento da liberdade de
expressão para comercializar a vida alheia é pura retórica”.
Num capítulo de respostas a
semelhante filosofia, mora Alceu Valença com muita razão: “O que é pior: a
mordaça genérica ou a suposta difamação?”. Mário Magalhães, jornalista
premiado e autor da indispensável biografia Marigella, cravou mais fundo: "De
acordo com a lei atual, o Cabo Anselmo poderia impedir a circulação de uma
biografia independente. O Cabo Anselmo tem o direito de impor à história uma
biografia chapa-branca? Afinal, a ditadura acabou ou não?".
Na verdade, e Paula Lavigne
em sua ânsia argumentativa não sabe, os autores de livros são os intelectuais
mais miseráveis do Brasil. No geral, não conseguem pagar nem um plano de saúde
com a renda dos seus livros. Às vezes nem uma razoável cachaça. É um paradoxo,
é uma profunda ironia, que na sociedade capitalista os escritores desfrutem de
tão alto conceito, mas ganhem de renda a glória, que gozarão quando os
seus ossos forem pó.
Num esforço, até entendemos
as contrariedades que os astros pop podem ter com os futuros biógrafos. Na vida
dos deuses apareceriam, além de secretos vícios do rosto sem maquiagem, algumas
brigas domésticas, rompimentos afetivos, vida íntima, vida sexual, atos
escandalosos. E quem sabe, o que talvez mais preocupe Paula Lavigne, alguma
análise das últimas declarações de renda, que exibiriam as verdadeiras fortunas
não declaradas. “Só eu sei”, entendemos. Os biógrafos são impiedosos.
Mas isso faz parte da sua
vida no mercado humano. Ou melhor, do mercado. É curioso que os compositores
nada reclamem das mistificações, mitificações, mentiras e falsidades que cercam
o seu endeusamento na mídia. Isso eles não estimulam, mas consentem, porque não
o desmentem. Servem-se em silêncio da boa fama e vamos em frente. Disso
não reclamam. Faz parte do show. Do show business.
Nesse clima de espanto, Benjamim
Moser, autor da bela biografia de Clarice Lispector, publicou na Folha de São
Paulo: “A liberdade de expressão não existe para proteger elogios. Disso,
todo mundo gosta. A diferença entre o jornalismo e a propaganda é que o
jornalismo é crítico. Não existe só para difundir as opiniões dos mais
poderosos. E essa liberdade ou é absoluta, ou não existe... Não pense, Caetano,
que o seu passado de censurado e de exilado o protege de você se converter em
outra coisa”.
A discussão é boa e traz para a luz o que
estava oculto ou silenciado. A saber, que no terreno do espírito, naquele mesmo
terreno mais espiritual, do divino e maravilhoso, artistas brigam não bem
por ideias, sentimentos ou ideologias, mas por grana e aura de intocáveis. Nada
demais, porque dizem à própria consciência que errar e negar, mentir e jurar,
tudo isso, meu bem, é do viver. Pois o artista não seria um grande
fingidor?
Mas aqui não pode haver compreensões
fraternais ou paternais. Irmãos e pais de quem mesmo seríamos? Os
monstros criados pela indústria cultural agora mostram os dentes. E não estão a
sorrir, nem a cantar os gritos e sussurros do coração. Falam de coisa
mais elementar, de grana e privacidade entrelaçadas em uma só pessoa, a do
compositor de sucesso. Eu sou rei, eu sou “foda”, como Caetano fala de si
e dos imortais músicos num vídeo do youtube. Se sou foda, tudo posso. Esse cara
sou eu. Eu oriento o movimento, eu oriento o carnaval, eu inauguro o monumento
no planalto central do país. Toda essa gente se engana, não vê que eu nasci pra
ser o superbacana.
Em resumo, todo o narcisismo colossal que
notávamos antes no pop star agora se mostra mais claro: não pense qualquer
miserável biógrafo que tudo pode escrever. Nem vem que não tem. Mamãe passou
açúcar em mim. Assim
cantava Simonal, o profeta do champignon.’
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