Da beleza imunda, fedorenta e luxuosa que nasce à noite no meio do lixo


André J. Gomes, Revista Bula

“A esta hora da noite, o trânsito na cidade definha. Um a um, os carros seguem para longe dali, tragados por seus destinos em ruas, vielas, garagens. O mundo adormece na intimidade de cada casa, a cidade aquieta, esgotada, apagando suas luzes por dentro. Aqui fora, o caminhão branco, sujo e forte avança lento, furioso pela rua repleta dos entulhos do dia, seguido de perto por dois homens que correm de uma calçada a outra, recolhendo os enormes sacos de plástico negro para lançá-los ao estômago imenso do rinoceronte de aço e rodas que avança esganado e barulhento.

Seguros como dois velhos violinistas durante o dueto de suas vidas, eles executam sua tarefa com tanta certeza e tanta graça que a noite ganha os acordes de uma música leve, doce, suave, perfumada de uma atmosfera profunda, para além do arroto violento da máquina arrastando o chorume de nossos restos, em seu ronco grave de mil violoncelos.

De repente, na leveza com que esses homens realizam seu trabalho pesado, a vida chega a parecer mais fácil e delicada. Eles valsam entre as calçadas, os braços abertos carregando sacos de lixo, as pernas firmes de quem resistiu até aqui aos trancos e às carreiras de um caminho esburacado. E deslizam no asfalto frio com a aparente facilidade de um ginasta olímpico voando sem asas sobre o tempo, na esteira lenta do veículo que segue engolindo a porcaria do mundo. O mesmo mundo que não os vê em seu belo e limpo esforço.

Pronto. Libertas do lixo, as calçadas ressurgem nuas, novas, reparadas. Os dois homens sorriem a alegria de quem acaba de dar jeito a todas as coisas. E saltam impecáveis, paralelos, ao estribo do caminhão que acelera gigantesco rumo à próxima rua.”
Artigo Completo, ::AQUI::

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