André J. Gomes, Revista Bula
“SOBE”, grita o homem correndo para o elevador lotado, prestes a iniciar sua viagem rumo ao topo do prédio comercial de 20 andares. A essa hora da manhã, perder o elevador significa chegar atrasado ao trabalho, então ele corre mais rápido. Nenhuma das tantas pessoas já embarcadas faz qualquer esforço para ajudá-lo em sua empreitada. Ninguém segura a porta de aço, ninguém aperta o botão que retarda a partida da nave, ninguém sequer lhe dirige um olhar de solidariedade e torcida, “corre, pobre diabo, você vai conseguir, eu acredito em você”. Nada. Ninguém.
Agora é ele e somente ele contra o tempo e as próprias forças. O elevador começa a fechar as portas, o homem corre ainda mais veloz e os passageiros do lado de dentro o assistem indiferentes, imóveis. Ele já prevê a si mesmo sozinho, do lado de fora, maldito excluído, marginal fracassado, enquanto seus colegas desconhecidos seguem impolutos rumo ao topo. Ferido no orgulho, ele tenta uma vez mais. Não, ele não será abatido assim tão fácil. Não sem luta. E num último impulso ele estica o braço e alcança a porta do elevador com as pontas dos dedos, no instante exato em que suas duas metades se encontrariam. Ele conseguiu! Parabéns, bravo homem! Você é um feliz passageiro do cubículo de aço e lâmpadas e botões que ganhará as alturas.
Seus colegas de viagem não conseguem esconder a frustração de vê-lo ali, vitorioso, impávido, prova viva e inconteste de que o esforço ainda é capaz de superar a indiferença e a idiotia. Ele diz “bom dia”. Ninguém responde. Uma por uma, ele examina as caras dos cretinos cabisbaixos, macambúzios à sua frente. Repara suas expressões de pressa e autoimportância. Observa o jeito apático e previsível como transferem os olhos do chão para o teto, do teto para o chão.
“SOBE”, grita o homem correndo para o elevador lotado, prestes a iniciar sua viagem rumo ao topo do prédio comercial de 20 andares. A essa hora da manhã, perder o elevador significa chegar atrasado ao trabalho, então ele corre mais rápido. Nenhuma das tantas pessoas já embarcadas faz qualquer esforço para ajudá-lo em sua empreitada. Ninguém segura a porta de aço, ninguém aperta o botão que retarda a partida da nave, ninguém sequer lhe dirige um olhar de solidariedade e torcida, “corre, pobre diabo, você vai conseguir, eu acredito em você”. Nada. Ninguém.
Agora é ele e somente ele contra o tempo e as próprias forças. O elevador começa a fechar as portas, o homem corre ainda mais veloz e os passageiros do lado de dentro o assistem indiferentes, imóveis. Ele já prevê a si mesmo sozinho, do lado de fora, maldito excluído, marginal fracassado, enquanto seus colegas desconhecidos seguem impolutos rumo ao topo. Ferido no orgulho, ele tenta uma vez mais. Não, ele não será abatido assim tão fácil. Não sem luta. E num último impulso ele estica o braço e alcança a porta do elevador com as pontas dos dedos, no instante exato em que suas duas metades se encontrariam. Ele conseguiu! Parabéns, bravo homem! Você é um feliz passageiro do cubículo de aço e lâmpadas e botões que ganhará as alturas.
Seus colegas de viagem não conseguem esconder a frustração de vê-lo ali, vitorioso, impávido, prova viva e inconteste de que o esforço ainda é capaz de superar a indiferença e a idiotia. Ele diz “bom dia”. Ninguém responde. Uma por uma, ele examina as caras dos cretinos cabisbaixos, macambúzios à sua frente. Repara suas expressões de pressa e autoimportância. Observa o jeito apático e previsível como transferem os olhos do chão para o teto, do teto para o chão.
Ele enxerga esses homens de terno e gravata
insistindo em encontrar sinal no celular! Olha essa velha com expressão de
bruxa má e rugas de quem apanhou da vida muito mais do que bateu. Olha essas
moças de cabeleira escovada emanando perfume melado, o jeito cabreiro de presa
e os gestos forçadamente defensivos de quem espera que todos ali estejam
prestes a avançar sobre elas, rasgar suas roupinhas de grife compradas em vinte
prestações no cartão e violar suas carcaças depiladas e acima do peso. Na ótica
perversa e estrábica das donzelas, todos ali são tarados potenciais, inclusive
a velha bruxa, esperando a hora de atacá-las. Coitadas, as moças mal sabem o
quanto são tão pouco atraentes. Nem desconfiam de que para o mundo elas sequer
existem.
Como também inexistem esses dois sujeitos fortões, apertados em suas
camisetas de algodão, enamorados de si mesmos, paquerando seus próprios
contornos no espelho ao fundo do elevador. Então ele repousa a vista sobre a
grávida de ar amargurado, triste, sozinha, entrando decerto nos últimos dias de
gestação. Ele espia de frente todas aquelas pessoas ali. Tão diferentes, tão
iguais. Tão incapazes de mirá-lo de volta e dizer “oi” ou “bom dia” ou “tá
olhando o quê?”. Nem um olhar sequer.
Resignado, ele desiste e respira fundo. Mas que cheiro é esse? Que
cheio horrível é esse surgido no momento exato em que ele inspira o ar com toda
a vontade? Sim, é isso. Não bastassem o combustível tão caro, o aluguel que
subiu de novo, o chefe que o espera irascível, a violência urbana e a estupidez
coletiva, alguém ali tivera o desplante de piorar o desastre. Alguém acaba de
liberar seus gases intestinais em pleno elevador. Quem foi o porco?
Teria sido a velha bruxa? Sim, foi ela, frouxa, as pregas sucumbidas
ao massacre de existir. Ou foi um dos fortões? Decerto, entupiram o organismo
de esteroides e vitaminas de cavalo até ventarolar a névoa do inferno. Desgraçados.
E os executivos cínicos? Claro! Só pode ter sido um deles! Escondidos na
pretensa polidez de suas gravatas, saem por aí com ar superior exalando seus
fedores por baixo. Perversos. Mas e as moças de escova? Sim! Ele pensa em como
se deixou enganar por elas. Foram elas! Tão dissimuladas ao ponto de orvalhar
gotículas invisíveis de estrume no ar enquanto encaram as próprias unhas decoradas
com esmaltes de nomes excêntricos.
O fedor sobe, recende, piora. Espalha-se por todo o cubículo
prateado como uma praga das trevas. Um bodum intenso, torpe, saído das tripas
de um lagarto gigante em estado terminal. Uma das moças leva a mão ao rosto e
fecha as narinas com os dedos. Mas que bela mula, ele pensa. Na minguada cabeça
dessa estúpida não entra o óbvio: ao fechar o nariz, ela se põe a inspirar a
nuvem intestinal pela boca.
Aos poucos o ar se torna pesado, a caatinga persiste, perdura. E
finalmente as pessoas se olham, se percebem. Inquisitórios, os desconhecidos se
encaram em silêncio de tumba, enquanto se dirigem olhares de acusação
recíproca. Quem foi? Quem foi o sujo? O culpado precisa aparecer. Então, traída
pela sensibilidade de sua própria situação, a grávida sucumbe ao clima
opressivo e se entrega sem dizer palavra. Em seu rosto redondo de gestante, a
fraqueza se faz evidente e a autoria do flato, inegável. Foi ela!
Mas esperem. A infeliz não tem culpa! A essa altura da gravidez,
segurar os próprios gases é uma tortura. Se pudesse, ele gritaria tal argumento
para todos ali. Mas não. Ele pondera, repensa e, finalmente, compadecido da
situação de sua colega gestante, é tocado por uma revelação. De súbito, ele se
vê em meio ao instante que vai determinar o rumo de sua existência, a chance
que poucas vezes na vida se dá a um sujeito banal e sem graça como ele. A
oportunidade que não se pode jogar fora.
E num sensacional gesto de grandeza, o homem se coloca na linha de
tiro entre a indefesa mulher prenhe e os olhares acusatórios que a fuzilam
impiedosos: “FUI EU!”.
A porta do elevador se abre, os passageiros fogem apressados,
aliviados, para fora da câmara de gás. Todos de uma vez, como o estouro de uma
boiada, escapam para longe do ambiente repulsivo. Todos para fora, menos ele.
Ele permanece ali, no interior da máquina. Sozinho, parado, satisfeito por ter
sido capaz de uma coisa grandiosa em sua vidinha ridícula de pagador de contas.
Do lado de fora, a mulher grávida olha para trás, segura a barriga,
encara tímida o seu defensor e desabafa sincera: “SEU PORCO!”.
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