Rui Martins, Direto da Redação
‘Às vezes é
importante desenterrar o passado, principalmente quando se pode dele tirar
lições para o futuro. Nestes dias, tenho vivido revoltado e tenho mesmo perdido
o sono com um intolerável retrocesso na política brasileira da emigração, digna
dos tempos da ditadura.
Em síntese, vai se gastar
dinheiro público e se promover num hotel caro perto de Salvador na Bahia, uma
encenação chamada IV Conferência Brasileiros no Mundo, sob o pretexto de se
estabelecer uma interlocução entre o governo e os emigrantes, intermediada pelo
Itamaraty. Como se os engravatados do Instituto Rio Branco tivessem algum gene
que os identifique com os trabalhadores emigrantes, como se sair do Brasil num
voo de primeira classe tivesse alguma coisa a ver com a viagem sofrida de um emigrante
brasileiro.
Por que chamo de encenação
esse circo que vai se montar em Salvador ? Se não fosse só pela tutela dos
diplomatas, que inclui inclusive o controle da agenda e a proibição de
visitantes indesejáveis, proibidos de falar e de votar, a ignomínia está no
fato de 85% dos chamados representantes dos emigrantes chamados à conferência
terem sido "nomeados" pelos Consulados. Entre 60 desses convidados,
menos de 10 foram escolhidos pela comunidade brasileira local.
Minha primeira palavra foi
de "pelegos", as figuras que representavam os antigos governos nos
sindicatos. Alguns acharam muito forte a palavra e me sugeriram
"biônicos", como se designavam aqueles prefeitos e governadores
nomeados pelos militares durante a ditadura. De qualquer forma, pelegos ou
biônicos, todos esses convidados são ilegítimos.
Mas o que a atriz Norma
Bengell, falecida há pouco, tem a ver com essa história ?
Pouca coisa talvez, mesmo se
nos anos 72 e 73 foi atriz emigrante na França, tendo mesmo trabalhado na
televisão francesa, ex-ORTF. Mas o episódio lembra o comprometimento de
diplomatas do Itamaraty com a ditadura, capítulo que esperamos seja devidamente
apurado pela Comissão da Verdade.
E podem nos ajudar a
entender como e por que, em pleno governo voltado para os segmentos até então
marginalizados da população, o ex-ministro Patriota conseguiu substituir um
texto preparado durante a administração Lula, que não era perfeito, por outro
não apenas imperfeito mas reacionário e que faz a política brasileira da
emigração parecer ter sido elaborada por gente ainda saudosa da época em que a
elite brasileira dividia a população em pessoas capazes e, lá embaixo, os
pobres dos infelizes juridicamente incapazes.
Porque a tutela dos emigrantes pelos diplomatas rima com censura.
E fica ainda mais indecente
quando são eles que escolhem os representantes dos emigrantes, desvirtuando até
os Conselhos de Cidadania, cujos membros são convidados por eles e não eleitos
pelos emigrantes. E os poucos conselhos eleitos, 7 ou 8, não são dirigidos pelos
emigrantes mas pelos cônsules ou vice-cônsules.
E agora vamos à Norma
Bengell.
Assim que Norma chegou a
Paris, com intenções de ficar, consegui fazer uma reportagem comprada pela
antiga revista Manchete - uma entrevista com a atriz, gravada numa praça perto
do Boulevard St. Michel, com vista para a Notre Dame.
Naquela época, a Manchete
era dirigida em Paris por Sílvio Silveira (um dos primeiros emigrantes
brasileiros na França, na época fazia parte de um grupo musical), que reunia
também as funções de contador e de vendedor de publicidade dessa revista da
família Bloch.
Entregues as laudas datilografadas com a entrevista, fiquei surpreso ao constatar que não tinham sido colocadas no malote cortesia da Varig para chegarem rapidamente à Redação, no Rio de Janeiro, naquela época chefiada pelo Justino Martins.
E perguntei ao Sílvio,
preocupado em receber logo meu frila, "por que a entrevista não seguiu no
malote ?".
E ele muito calmamente me
explicou ser praxe naquela casa, quando se tratasse de questões mais delicadas,
se levar ao embaixador em Paris, que poderia fazer os cortes necessarios antes
de ser enviada ao Rio. "Eu não nasci ontem, aqui não quero
confusão!", disse Silvio com um sorriso debochado.
Por que estou irritado ?
Porque tudo que se deixar discutir em Salvador terá de passar pelo crivo do
Itamaraty, como minha entrevista com Norma Bengell.
A diferença é que não
vivemos mais na época da Operação Condor, da denúncia vinda de Santiago que
levou à morte o deputado Rubens Paiva e do apoio logístico dado à ditadura
uruguaia contra os Tupamaros.
Minha luta pela emancipação
política dos emigrantes tem também no seu bojo esse gosto amargo dos anos de
chumbo.”
Comentários